DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 Os  Congressos de História do Grande ABC
e as tarefas da poesia
(*)      

 

Antes de tudo, o agradecimento desta poeta aos organizadores, pela indicação de meu nome e do inesperado e honroso convite para esta fala inaugural.

Confesso que não foi sem hesitação que aceitei. A responsabilidade é imensa e muitos e mais qualificados do que eu poderiam e deveriam estar aqui.

Desde já, conto que as eventuais falhas sejam relevadas e entendidas como uma licença poética, pois é na língua da poesia que melhor consigo me expressar.

É também de poesia que vamos falar, ou melhor, das tarefas da poesia na história dos congressos, esse gênero literário um tanto quanto subversivo que, entre outras coisas, costuma recolher miudezas do cotidiano e transformá-las em matéria de criação.

Numa sociedade cada vez mais descartável como a nossa, manter vivo o que já desapareceu ou corre perigo iminente é uma tarefa memorialística, de estudo e de pesquisa, mas também uma tarefa poética. Diria que vai além, é um ato, sobretudo, político e de militância cidadã. Talvez resida nessa ideia, a da poesia e militância, a justificativa de minha presença hoje aqui.

É possível que a região do Grande ABC, esta quase nação que se aproxima dos três milhões de habitantes, não tenha se dado conta de que foi e é palco de iniciativas de  vanguarda de caráter social, intelectual, político e artístico projetadas em nível nacional  e que a própria história de 25 anos deste Congresso é uma delas.

Não há notícias de que houve ou haja no Brasil algo semelhante ao Congresso de História do Grande ABC, considerando-se algumas de suas mais notáveis características, como a de reunir e dar voz tanto a historiadores e pesquisadores de formação acadêmica quanto a memorialistas, artistas e pesquisadores espontâneos, como é o caso desta que vos fala. Essa peculiaridade já era apontada pelo Prof. José de Souza Martins, no prefácio do livro com as Atas do I Congresso, quando disse que "Muito provavelmente pela primeira vez no país, juntaram-se sob o mesmo teto, no velho 1º Grupo Escolar de Santo André, pesquisadores acadêmicos e memorialistas para troca de ideias e aprendizado recíproco. Todos tinham muito que falar e muito que ouvir."

Outro aspecto pouco usual em eventos desta natureza é o próprio formato de organização, ou seja, a opção, desde o início, pela ampla discussão e construção coletiva do Congresso. Durante todo o democrático e nada fácil processo de organização, elementos da sociedade civil e governamentais se reúnem  em assembléias gerais abertas ao público e a convidados, que apontam temas, sugerem nomes, levantam questionamentos.

Este é também um Congresso que tem concedido espaço igualmente privilegiado para as artes e a cultura. Um Congresso que não se debruça apenas no estudo do passado, mas é também mergulho profundo, debate e reflexão do presente.

Outro e não menos interessante aspecto é a comemoração, neste ano, do seu Jubileu de Prata.

O mérito é de muitos, mas, merece especial destaque e a nossa homenagem o Prof. José de Souza Martins, idealizador do Congresso. Corria o ano de 1989 e, por iniciativa do GIPEM - Grupo Independente dos Pesquisadores da Memória, comemorava-se, com ciclos de palestras na Fundação Santo André e no Colégio Singular, o centenário da autonomia político-administrativa da região, marcado pela lei provincial nº 38, de 12 de março de 1889, que oficializava o Município de São Bernardo com abrangência sobre todo o território hoje conhecido como ABC. Foi nesse clima de resgate e discussão da história local, que o Prof. Martins tomou a iniciativa de enviar um ofício ao então prefeito de Santo André, Celso Daniel, sugerindo a realização de um Congresso de História. O Prefeito, também professor e pesquisador, além de grande entusiasta da ideia de integração regional, aderiu de imediato à sugestão e contou desde o início com a imprescindível contribuição do valoroso GIPEM, em plena atuação e efervescência desde 1987, tendo em sua linha de frente Ademir Médici e os saudosos Philadelpho Braz e Paschoalino Assumpção. Nos batalhões a seguir, vinham os igualmente saudosos Jayme da Costa Patrão e Vangelista Bazani, o Gili, além de muitos outros ativos elementos que, na atualidade, continuam a levar à frente, cada um à sua maneira, o GIPEM, ao menos como ideia fortemente simbólica de sua representação. O Grupo teve uma atuação decisiva em ações e movimentos de preservação da memória regional em seus momentos mais cruciais e chegou a reunir mais de 100 pesquisadores e interessados na memória regional.

 Já no I Congresso, o Prof. Martins referia-se ao GIPEM como "um detonador de consciência, um instrumento de mobilização que começou a por um basta na onda da indiferença e da ignorância." Ainda no dizer do professor, "certamente foi o GIPEM a alma do Congresso e seu principal animador". Foi ele também que tão apropriadamente qualificou aquele I Congresso como um "encontro dos desencontrados"

Evocando o eterno coordenador do GIPEM, Paschoalino Assumpção, José Roberto Gianello, um dos membros fundadores daquele Grupo, diz em artigo publicado no Diário do Grande ABC que "O GIPEM teima em ser independente numa sociedade fortemente burocratizada (...)  Ninguém sabe de quantos membros é composto, só há uma certeza: o seu coordenador é o Paschoalino Assumpção, nascido em 8 de abril (data da fundação de Santo André) e morador da rua da Memória, no Bairro Assunção. Só estes predicados já o credenciariam para esta função."

 O GIPEM seguiria contribuindo fortemente com todos os demais Congressos. Citar é sempre arriscado, mas ainda assim, arrisco, lembrando aqui, além daqueles já citados, outros de seus atuantes membros e, através deles, prestar a nossa homenagem aos demais, não menos importantes: Antonio Andrade, Antonio Possidonio Sampaio, Adalberto Dias Almeida, João de Deus Martinez, José Duda Costa, Gisela Leonor Saar, Silvia Helena Passarelli, Valdenizio Petrolli e Walter Adão Carneiro.  E nesta lista consta o nome de Beltran Asencio que, infelizmente, faleceu no último dia 21 e agora já é também saudade.

O Congresso também muito deve à decisiva contribuição de inúmeros servidores públicos de carreira que compõem os serviços e locais da memória dos sete municípios, pessoas comprometidas com o seu ofício, que muito se empenharam no chamamento, construção e estabelecimento de  infraestrutura mínima, responsáveis por boa parte do êxito de cada um dos Congressos.  Assim, não poderíamos deixar de lembrar a dedicação e compromisso de Doraci Sponchiato, Jorge Magyar, Neusa Borges e Arlete Ferriani da Cruz, de São Bernardo do Campo, Wilson Stanziani e Nilo de Matos, de Santo André, Sonia Xavier e Alecksander Jovanovick, de SCS, Absolon de Oliveira, Malu Ferreira e Eliana Maria Marques, de Diadema, William Puntschart e Simone Bello, de Mauá, em nome de quem prestamos nossa homenagem aos tantos outros servidores públicos que ao longo destes anos colaboraram com o Congresso.

 Agora, peço permissão para cumprir a primeira tarefa de poesia desta minha fala, uma saudação especial a todos os incansáveis memorialistas e pesquisadores, lendo um poema que fiz durante uma expedição do GIPEM à UNICAMP, em  8 de dezembro do já distante 1988:

 

ÔNIBUS DA MEMÓRIA
      aos companheiros do GIPEM

 

A memória trafega de ônibus

percorrendo a manhã

dezembro que também ficará.

Indiferente, a cidade sequer o nota, precário transporte

pra tão preciosa carga.

Imagens congeladas em sépia

convivem em harmonia com o vídeo/movimento/vivo de Moacir.

Sotaques vários

identidade comum.

A poeira deste ônibus traz restos de mosto à mostra

deixados pelos vinhateiros

traz pó de serragem vermelha

dos barracões dos moveleiros

traz mancha de graxa morna

em digitais fortes e calosas

(indeléveis marcas)

dos peões do ABC.

A história não espera

e os passageiros da Memória

recolhem, pacientes, os cacos

para o vitral do amanhã.

    

Mas voltemos a 1990. A partir dessa conjunção de vontades, começa a ser delineado o Congresso. Assim, de 27 a 31 de agosto de 1990, realiza-se o I Congresso de História do Grande ABC, sob o tema “A Classe Trabalhadora em seu Lugar”, com a coordenação temática do Prof. Martins, contando, inclusive, com a entusiasta participação do próprio Prefeito Celso Daniel não só durante a organização como em várias mesas de debates e, naturalmente, com respeitados nomes na área da pesquisa acadêmica e grande número de membros do próprio GIPEM.

O indescritível clima de festa e de entusiasmo era visível e contagiante em meio às cerca de 700 pessoas que dele participaram. Uma festa da cultura e da memória, com bons motivos para tamanho júbilo.

 Afinal, após anos de reivindicações, o Museu de Santo André era transferido oficialmente para o prédio do I Grupo Escolar da cidade, construção dos anos 20 do século XX, local onde se realizou o próprio Congresso. Esta, aliás, viria a ser uma prática recorrente em Congressos posteriores, ou seja, recuperar prédios históricos com a finalidade de abrigar os Congressos e, ao mesmo tempo, seguir dando-lhes novos significados e utilização, como foi o caso do Educandário, em Mauá, do prédio onde funcionou a Câmara Municipal do Velho município de São Bernardo e da antiga Escola Municipal de Ensino Santa Terezinha, ambos em São Bernardo do Campo.

 A partir daí, a  comunidade apropriou-se do Congresso e as Administrações Públicas seguintes não mais puderam recusar apoio e infraestrutura à sua realização.  

Chegar até aqui não foi um caminho fácil. Marcado por tensões, discordâncias e críticas em momentos diversos, intercalando reconhecidos avanços e alguns lamentáveis retrocessos, o Congresso tem procurado avançar dentro de suas próprias circunstâncias e possibilidades, por vezes restritas.

 Aprendemos com os Professores José de Souza Martins e Luiz Roberto Alves, ambos destacados pesquisadores, intelectuais dos mais respeitados no país e que marcaram a história destes Congressos com o brilho do seu reconhecido trabalho, que a nossa história  é marcadamente a do mundo do trabalho. E quando falamos de trabalho não nos referimos apenas ao mundo do trabalho operário. Esta é também uma história de índios e escravos, de mulheres e de suas silenciosas lutas de resistência. Esta é também uma história de reivindicações e conquistas sociais. Esta é também uma história de arte e cultura. Esta é também uma história que inclui a diversidade, não por acaso, um dos temas em pauta deste Congresso dos 25 anos.

Estes e outros tantos e não menos importantes pesquisadores que por aqui passaram

também e nos disseram e mostraram que a história desta região era até então, uma história oculta e mal contada. A oportunidade destes encontros e consequentes trocas de conhecimento, contribuiu também para despertar cada vez maior interesse daqueles que, munidos de instrumental científico adequado,  passaram a fazer dessa história objeto de suas dissertações e teses acadêmicas, a cada ano ampliadas e melhor contadas.

 Boa mostra desse crescente interesse universitário são os trabalhos expostos nos Encontros de Pesquisadores, promovidos anualmente pelo Museu de Santo André Dr. Octaviano Gaiarsa, desde 1998 e que, em abril deste ano atingiu sua 17ª edição. O Prof. Alexandre Takara, membro do GIPEM e assíduo colaborador do Congresso desde a primeira hora, analisou esta última edição através de uma série de artigos que foram publicados por Ademir Medici, em sua coluna Memória, no Diário do Grande ABC. Antes, em 1998 e 1999, nesse mesmo jornal, o prof. Takara foi responsável pela coluna Pesquisa Grande ABC, com resumos de teses e dissertações acadêmicas sobre o ABC. Iniciada com o propósito de divulgar o V Congresso em Mauá, a coluna seguiu publicando os trabalhos, cerca de 40, mas o Prof. Takara chegou a identificar 275 títulos, defendidos na USP, UNICAMP, UNESP, PUC-SP e Universidade Federal da Paraíba - Campina grande. Apenas seis deles na UMESP, em São Bernardo. Essas e outras tantas significativas ações no campo do estudo e preservação da memória marcaram os agitados anos 90 na região.

 A já mítica coluna Memória, publicada diariamente pelo jornalista Ademir Medici no Diário do Grande ABC há 28 anos, é um privilegiado espaço por onde a memória desta história transita. A própria coluna também já história e, por isso mesmo, caberia ao Congresso incentivar e promover seu registro e estudo, bem como patentear em seus anais a homenagem merecida pelo raro e meritório trabalho desse jornalista e pesquisador que já publicou mais de três dezenas de livros que registram diversos aspectos da memória do Grande ABC.

 Esta história passou também a ser levada em conta pela voz de seus próprios protagonistas. A história vista e vivida, através de outra perspectiva que, no dizer do Prof. Alexandre Takara, o "Congresso deflagrou uma luta de saberes. O saber tradicional, domínio das elites e, agora, o da classe operária empenhada na construção do seu próprio saber".  

 Desta forma, conforme o prof. Luiz Roberto Alves, passamos, a "recriar a dimensão humana da região, através da memória acumulada". E esta, no meu modo de entender, só pode ser também uma tarefa da e para a poesia.

 Eis aí o caldo deste fervente caldeirão de culturas, imenso território marcado por constante processo de transformação, no qual pesquisadores acadêmicos, memorialistas, trabalhadores, sindicalistas, estudantes, lideranças comunitárias, artistas de todas as linguagens, donas de casa, gente de várias gerações, lembram e perguntam-se, através de suas próprias memórias, quem são. Escavam, assim, sua própria trajetória em busca de uma identidade possível, sabendo que suas vozes e indagações encontraram acolhida privilegiada aqui.

São eles que, ao longo destes 25 anos, nos falaram da memória dos gestos, dos cheiros, dos sons, do imaginário que caracteriza este originário lugar de passagem, agora lugar de permanência e enraizamento. Marcas que podem não mais identificar, mas lembram. Dolorosamente, por vezes, lembram que a rua foi substituída por espaços privados, os centros comerciais, simulacros de locais públicos, ruas ilusórias destas sete cidades  já sem arredores, prédios residenciais a verticalizar a outrora horizontal e periférica paisagem, em constante e desmesurado inchamento.  Ao lembrar e narrar, essas vozes fazem com que possamos nos mirar no espelho da história, transformando-nos em "testemunhas de nossa própria origem", como nos aponta o escritor Carlos Fuentes, referindo-se à América Hispânica. Isto faz parte de um processo que assinala a nossa possível identidade cultural, tema objeto de alguns Congressos, muitas mesas de debate e tema central deste de agora, com a sempre instigante pergunta: o que somos e o que nos une?

Este foi também um Congresso que privilegiou as artes e a cultura, tanto as de caráter popular quanto erudito. Exposições e intervenções artísticas fizeram parte integrante dos Congressos, já a partir do primeiro, no qual se apresentaram os grupos Folia de Reis de SBC, Catira Às de Ouro e Samba-Lenço, ambos de Mauá. A presença hoje entre nós do músico virtuose Robson Miguel bem representa a arte que aqui é produzida.

 Com a realização do próximo Congresso em Rio Grande da Serra, e esperamos sair daqui com esse compromisso garantido, encerrar-se-á um segundo ciclo, ou seja, a realização do Congresso por duas vezes em cada uma das 7 cidades que compõem o ABC. Este é, portanto, um momento oportuno e conveniente para pensar  e estudar o próprio Congresso, estabelecendo desde já o desafio de que, num eventual 3º ciclo que esperamos sinceramente venha ocorrer, será preciso reinventar-se.

 O estudo e a análise de todos os congressos, do que aqui foi estudado ou deixou de ser, mereceria um Congresso só para si, ou seja, a história do próprio Congresso, que poderia ser o tema do Congresso que abrisse esse eventual terceiro ciclo. Deixo aqui a sugestão para se analisada já na preparação do 14° Congresso.

Vejamos como a significativa reunião dos temas centrais dos 13 Congressos instiga e desafia e, a mim em particular, até pela sonoridade dos títulos, sugere que, além de merecer estudo especial, se constitui numa tarefa para a poesia.

 

A classe trabalhadora no seu lugar

Caminhos e Rumos: Índios, Escravos e Operários

À sombra das chaminés – a produção da Cultura no ABC

Tempos Históricos do ABCD Paulista

História em silêncio: a (des)ocultação da História do povo do Grande ABC

Nós, os Suburbanos 

Matas, águas, trilhas: Caminhos do ABC

No meio dos caminhos, o Grande ABC

A classe operária depois do paraíso

Lembrança e esquecimento na constituição da memória do Grande ABC

Cultura, Patrimônio e Memória

Trajetórias da construção da memória no ABC

História, diversidade e identidade - o que nos une?

 

Lamentavelmente, muito pouco do tanto que aqui foi tratado tornou-se do  conhecimento público. Inexplicavelmente, e com sua já tão longa trajetória,  a realização do Congresso nas suas últimas edições foi muito pouco divulgada pela imprensa. Isso talvez seja compreensível, dadas as conhecidas dificuldades em passar pelos meios de comunicação de massa onde, obrigatoriamente, todas essas informações são filtradas. Como resultado e também pelas limitações da organização do próprio Congresso, ainda é muito pouco conhecido entre o público estudantil universitário e melhorar essa situação pode se constituir numa das metas futuras. É preciso que a escola incentive o estudante a conhecer e pesquisar sobre a sua rua, o bairro, o centro, a periferia, a cidade, a outra cidade, a fronteira, buscar identificações para construir a identidade que nos falta.  O grande escritor português, Miguel Torga, anotou num de seus diários que "Só quem se lembra se identifica. O instinto de conservação sabe que a morte é perder a memória". Todos nós aqui acreditamos nisso, por essa razão, lembramos e anotamos. Lembramos e estudamos para poder compreender e sobreviver.

 Compreender o viver numa paisagem mutante, repleta de esqueletos arquitetônicos, lojas e cinemas transformados em estacionamento, grades a substituir jardins, câmaras a substituir vizinhos, máquinas a substituir toques e gestos, a precarização a substituir o pleno emprego, requer um permanente exercício do pensamento complexo de que fala Edgar Morin. E este Congresso, ao estimular o estudo da história local e debater a complexidade deste presente, pode contribuir para (re)construir  e fortalecer a auto-estima localista.

Faltou até agora vontade política por parte das instituições e, reconheçamos, falta de organização, ação e cobrança da sociedade civil no sentido de fazer valer as centenas de recomendações constantes das cartas elaboradas ao final de cada um dos Congressos, cumpridas apenas em raríssimos casos. Uma dessas recomendações, perdidas no tempo, mas que valeria a pena recuperar, foi a criação de uma comissão ou grupo permanente de discussão pró-Congresso, com a finalidade de estudar e analisar sistematicamente todas as propostas e trabalhos apresentados nos congressos, apontando lacunas, projetando ações para os futuros congressos, com renovação de propostas e procedimentos que justifiquem sua continuidade. Cumpridos os dois ciclos e a decisão pela continuidade, não haverá mais desculpas nem chance para ingenuidades, muito menos para mornidão, apenas para a ousadia da reinvenção.

 Sabemos todos dos estragos que a sanha destruidora disfarçada de progresso continuou a devorar marcos da nossa memória e do nosso patrimônio cultural, na maioria das vezes, na calada da noite, ceifeiras a serviço do deus da Economia e do Mercado ao qual a política de estado tanto faz concessões e nos leva a ser e parecer justamente o que não somos. Mas não nos calamos. Perdemos muitas batalhas, mas avançamos em algumas frentes. Precisamos manter a utopia de vir a cumprir algumas batalhas mais.

 A cidade dos poetas, dos músicos, dos pintores e dos pesquisadores, a cidade que lembra e significa, também tem a função de colocar em xeque a cidade da política e dos negócios que parece caminhar para uma situação inumana. A poética dos sentidos haverá de, mesmo na provocação de tensões, encontrar as convergências e aprender a conviver na alteridade. Quem sabe, possamos chegar ao final deste Congresso com a resposta à pergunta sobre o que nos une e, tomara que ela aponte justamente para nossa evidente diversidade cultural, vozes dissonantes que, afinal, formam um sempre instigante coral que precisa ser ouvido, interpretado e compreendido.

 Lembremos que Celso Daniel, já nos dizia em 1990 que "o termo região precisa ser pensado porque tem muito a ver com a história do ABC.  A construção de uma consciência sobre o ABC, tomada a partir do momento em que seus integrantes se percebam como parte de uma região. Isso é a construção de uma identidade própria. Creio, assim, dizia ele, "que muitos cronistas da região que ajudam a resgatar a história do ABC estarão empenhados nessa dimensão da consciência que age, fundamentalmente no âmbito cultural."

Vale lembrar também das palavras de Philadelpho Braz proferidas durante o 8º Congresso, em Paranapiacaba: "A história é escrita por um que representa todos, mas a base da história está no povo da localidade que vai num caminho até chegar na intelectualidade, que dá o acabamento final.(...). A história tem que ser contada com a ternura de uma canção de ninar, para que as pessoas sejam cativadas por ela".

 O roteiro está dado. Bastará exercermos contínua vigilância para fazer cumpri-lo. Trata-se, portanto, de uma decisão cultural que precisamos buscar a todo custo.

Agora, se me permitem, para ser coerente com a proposta das tarefas da poesia neste Congresso, encerro com dois poemas de minha autoria, inéditos em livro. O primeiro, de novembro de 1992, alusivo a uma viagem de estudos dos pesquisadores do GIPEM a Rio Claro, visitando o Centro de Documentação e o Museu Histórico e Pedagógico Amador Bueno da Veiga daquela cidade, no interior de SP.
Foi publicado na coluna Memória do Diário do Grande ABC e denominado

  

BANDEIRANTES DO TERCEIRO MILÊNIO

 

Pela janela, já é passado

o ônibus deixa São Caetano

      e os seus cheiros

- memória que também ficará

 

O dia é de um inverno tardio

mas os ânimos têm a luz

própria daqueles que buscam

 

Lá vai o GIPEM

caravana à busca do futuro

à cata de velhos papéis

 

Rio Claro

integralismo, verde-amarelismo

mineralogia, barões, fazendas, café

o passado passado a limpo

 

O ABC segue o curso do rio

águas e fósseis

amalgamando destinos

 

Bandeirantes sem bandeiras

os pesquisadores adubam

canteiros para o terceiro milênio

 

O segundo, publicado há alguns anos no meu blog À Janela dos Dias, a propósito da comemoração do aniversário de minha cidade, Santo André, onde vivo há 43 anos, mas que, tendo em vista a história comum de nossa região, que nasceu uma, ainda que as constantes reivindicações de autonomia política tenham criado sete, continua a se confundir e emaranhar, ignorando fronteiras. O poema em prosa foi revisto e renomeado para esta ocasião

 

de villa de santo andré da borda do campo a região do abc paulista
- esboço para um rimance

mares renavegados. previstas tormentas. Aventurasdesventuras, o porto desconhecido
a terra que apenas começa. serra acima, vai o luso ramalho (vouzela já só lembrança...). escarpas, matas, indígenas. abril rompendo, quinhentos ao meio.

tibiriçá, bartira. guaianases. cúmplices no quinhão fincado. Brancos e índios. abrasadas carnes. uniões espúrias. paixões condenadas. miscigenação. gestos fundantes

da tosca vila, os parcos vestígios : atas, apenas, registro e memória. nas trilhas dos campos de piratininga, outra história, homens outros, silenciosas revoluções.  os trilhos. a ferrovia (serra domada) caminho de retorno ao mar. conspirações, políticas, batalhas, religiões, disputas, poderes. história efêmera. história a desocultar.

de todos os lugares, mais joões e mais josés, anônimas cidas, desconhecidas marias (incertidões). sotaques vários, línguas outras, atavismos. cargas preciosas, humanas cargas. à margem do caminho, borda e passagem, a cidade escolhida convida a ficar. constroem, procriam, ficam. cidadetrabalho, cidadeespelho, seres humanos em busca de identificações

máquinas, máquinas. trabalho, trabalho.  diuturno roncar, roncar. a selva de outrora

selviliza-se, robotiza-se. culturas híbridas, amalgamadas etnias. a arte dessa aldeia é universal

no suceder de espantos, olhar de poetas, visão de cronistas, cérebros a substituir braços, cidade em busca de outro pão. depois das máquinas, outras máquinas, cibernéticas, voadoras.  o trabalho, outro. triunfo e precarização

na cidade do XXI, o trânsito infernal, a difícil mobilidade, as máquinas feitas para andar não andam. ao fim do cansado dia, o lazer possível, encontros celebrados à sombra de outra luz (sóis e estrelas de néon). do controverso nascimento (histórias, abris) às cidades reais, contínuo reinaugurar-se, megalópoles em busca de humanização

 

Muito obrigada.

Dalila Teles Veras

 

Bibliografia

 - Anais do I Congresso de História da Região do Grande ABC, Prefeitura Municipal de Santo André, Secretaria de Educação e Cultura, 1990, SP

- Anais do II Congresso de História da Região do Grande ABC, Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo, Secretaria de Educação e Cultura, Departamento de Ações Culturais, 2000, SP

- Anais do III Congresso de História do ABC - Fundação Pró-Memória, SCS, 1999

- Anais do VIII Congresso de História do Grande ABC, (CD) Consórcio Intermunicipal Grande ABC, 2004

- Hemeroteca e acervo do Núcleo Alpharrabio de Referência e Memória (Alpharrabio Livraria, Santo André, SP)

 - Imprensa:

   Diário do Grande ABC

  Jornal ABCDMaior

 

* Palestra proferida por Dalila Teles Veras, na abertura do XIII Congresso de História do Grande ABC, "História, Diversidade e Identidade: o que nos une?" realizado na cidade de Ribeirão Pires, de 23 a 26 de setembro de 2015

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