DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 A AMÁLIA E O FADO - 
Estranhas formas de vida
 

                                                     dalila teles veras (*)

      "O fado começou para mim como uma cantiga e acabou por ser uma forma de vida com que me identifiquei. Uma estranha forma de vida." Amália Rodrigues

             Corria o ano de 1974 e o mês era julho. Portugal ainda oferecia cravos vermelhos aos viajantes no Aeroporto de Lisboa e era possível sentir um clima único de júbilo e esperança em cada um dos rostos que transitavam pelas ruas de Lisboa. Uma viagem para não esquecer. Numa loja na Baixa lisboeta, dou com o LP Com que Voz, prensado em 1972, mas do qual não havia ouvido falar no Brasil. Foi um verdadeiro choque estético-musical.

            Nesse álbum, hoje considerado histórico e que mantenho comigo, também como um tesouro no meu relicário de lembranças, Amália Rodrigues, voz única e singular, interpreta poetas de língua portuguesa, de altíssimo calibre literário como Cecília Meirelles, David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Alexandre O´Neill, Pedro Homem de Mello, José Carlos Ary dos Santos e Camões (cujo poema dá título ao LP), dentre outros, todos eles  musicados pelo gênio de Alain Oulman.

            Mas então, o fado (também) podia ser isso? perguntei-me.      Até então, "o fado era para mim apenas uma cantiga" com versos populares, ingênuos e toscos, retrato das tragédias amorosas e vicissitudes de excluídos sociais que eu ouvia esporadicamente em alguns restaurantes "típicos” na capital de São Paulo, locais que tentavam recriar ambiente semelhantes àqueles da velha Alfama, Bairro Alto e Mouraria, em Lisboa. Lembro, particularmente, do Abril em Portugal, na Rua Caio Prado, quase esquina com a Consolação, onde fui poucas vezes, pelo fato de seu custo proibitivo para o meu poder aquisitivo de então. Ali, ao vivo, fadistas interpretavam, via de regra, de olhos fechados e com seus indefectíveis xailes negros, velhíssimos fados. Ainda que apreciasse aquilo, ficava-me a sensação de que o fado havia estagnado naquelas velhas canções, as mesmas que, vez ou outra, ouvia minha mãe cantar (ainda que desafinada, gostava de cantar fados, em especial, quando costurava roupas à máquina). Fato curioso é que, por mais que me soasse passadiço, coisa para velhos e saudosistas, devo admitir que todo aquele clima de nostalgia e tragicidade exerciam (atavicamente, talvez) um certo fascínio sobre a jovem de então.

            Esse (re)encontro com o fado representou  para mim o "acontecimento" de que falava a própria Amália. Instalava-se ali a paixão por esse gênero de canção que já estava em mim sem que o soubesse e do qual fiquei para sempre cativa.

 Amália

            É com Amália, mulher de origem humilde, diga-se, que o fado sai de sua condição de “canção de vencidos” apropriando-se justamente da alta literatura. Dentre os tantos méritos dessa cantora que, de acordo com musicólogos, revolucionou o fado tradicional, enriquecendo sua até então considerada pobreza melódica inicial, acrescentando-lhe, inclusive, o improviso (considerado um elemento do jazz) haveria também o de fazer com que o fado alcançasse um prestígio internacional, como "canção portuguesa", não folclórica, representado em um nível jamais visto até então.

            É o clássico se faz popular, Camões e outros tantos poetas eruditos na boca do povo. Contudo, “cair na boca do povo” nem sempre significa aval político. Surpreendentemente, o Portugal da chamada Revolução dos Cravos (abril de 1974) passa a ignorar Amália, rotulando-a de representante do salazarismo e, por um certo período, a já famosa e internacional artista passa a receber críticas desonrosas e injúrias.

            Anote-se que nesse mesmo ano, 1974, é publicado o livro A Mitologia Fadista, de António Osório, poeta tido em altíssima conta no cenário literário português. Essa obra bem revela, através de uma linguagem cáustica e irônica, o quanto de desprezo intelectual por essa manifestação musical era cultivado à época.

            O livro começa por falar dos ambientes e da forma de se cantar o fado "essa encenação da desgraça, revela, primeiro de tudo, a ausência quase completa de meios de expressão" e termina com o vaticínio: "à medida que se literaliza ou procura melhorar de nível, que abandona as suas origens e muitos dos seus temas "castiços", que procura, em suma, sobreviver competindo com as canções estrangeiras, o fado desfigura-se e deixa de exprimir uma condição, um modo de vida, concretos. A sua ambiência é cada vez mais artificial, até porque o substrato humano que exprimia tende a desaparecer. (...)         Também o fado atravessa um mau momento: corre o risco, conforme já sucedeu ao tango, de perder a pouco e pouco, e ao mesmo tempo, as suas características e a sua influência." Irônico, o autor finaliza: "Em todo o caso, não nos iludamos: o fado nem tem já os dias contados, nem se devorará a si próprio. Sempre soube adaptar-se às circunstâncias - é o que está agora a fazer - e o seu melhor trunfo, o mais perdurável, encontra-se no fundo das nossas limitações".

            O gênio e a arte de Amália estavam, porém, acima de rótulos e juízos críticos, muitas vezes equivocados, colados com a goma apressada da (legítima) euforia política da época, ainda impregnada do pensamento elitista anterior à Revolução. Continuou a cantar pelo mundo, sendo recebida em delírio pelas mais nobres platéias, como o Carnigie Hall, em Nova Iorque, O Canecão, no Rio, e o Olympia, em Paris ("mas em Lisboa, ninguém sabia dessas coisas", diria ela a seu biógrafo, muito tempo depois).

            Ainda que cantasse, vez ou outra, também em outras línguas – forma gentil de retribuir os aplausos - ninguém precisava falar português para entendê-la. Amália era universal e deu ao fado essa dimensão. Amália confessa:  “o que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta, acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica” e Amália cantava para ser sentida, toda ela interprete de sentimentos, ouso dizer, herdados culturalmente, portuguesamente.

            Em 1978, já totalmente apaixonada por sua voz, tive a oportunidade (a única) de assisti-la ao vivo, no Palácio das Convenções do Parque Anhembi, em São Paulo. Muito mais que uma cantora, deparei-me com uma verdadeira artista, mulher/espetáculo, um corpo/voz/instrumento que não precisava de movimento para expressar-se e preencher todos os espaços disponíveis do palco e da platéia. Presença hipnotizante e epifânica. Esse espetáculo percorreu, além do Brasil, vários outros países como a África do Sul, Congo, Canadá, Venezuela, Argentina, incluindo uma tournée pela França.

            Como era de se esperar, durou muito pouco (e somente em Portugal) o "ostracismo" ao qual tentaram relegá-la. Passados os primeiros  anos de euforia revolucionária,  muitos erros e acertos depois, Portugal voltou a (re)conhecer-se nela (e no fado), como antes os portugueses espalhados pelo mundo já haviam se reconhecido.

            Reconhecendo-se nela, reconheciam-se no fado, espelho do espelho onde se miram e se identificam.

            A medida de sua consagração pode ser avaliada pela pompa oficial que revestiu seu funeral (Amália morreu no dia 6 de outubro de 1999) que durou dois dias e duas noites. O comovente cortejo que levou milhares de pessoas às ruas ("um mar de gente, um imenso adeus") que a aplaudiam e cantavam os seus sucessos, fenômeno poucas vezes visto no país, em se tratando de um artista. Finalmente, em 8 de julho de 2001, Portugal concede a Amália a glória definitiva: seus restos mortais são transladados para o Panteão Nacional. Mais uma vez, Amália subverte a tradição. Uma fadista, exceção absoluta, vai para o lugar até então reservado apenas a monarcas, presidentes da República e escritores de vulto, como Almeida Garret e Guerra Junqueiro. 

           

Afinal, o que é o fado?

"Almas vencidas / Noites perdidas / Sombras bizarras / Na mouraria / Canta um rufia / Choram guitarras / Amor ciúme / Cinzas e lume / Dor e pecado / Tudo isto existe / Tudo isto é triste / Tudo isto é fado" Aníbal Nazaré

 

            Do latim fatum, o vocábulo fado significa "destino, necessidade fatal, fatalidade, resolução, decreto dos deuses, sina, desgraça, infortúnio, desventura" (Novíssimo Diccionario Latino-Portuguez, Santos Saraiva, 3a. Ed. H.Garnier, 1896).  No sentido de canção, a palavra só aparece registrada em 1874, na 4a. edição do Dicionário de Lacerda ("fado, cantiga e dança popular, muito característica e pouco decente: o de Lisboa, o de Coimbra), conforme anota Alberto Pimentel em "A Triste Canção do Sul - subsídios para a história do fado, Livraria Central de Gomes de Carvalho Editor, Lisboa, 1904). "O povo passou a dar o nome de Fados às canções que celebram as agruras do destino e a crença na lei irrevogável do Fado".

            A origem do fado é controversa. Sua história é mesclada por lendas e muitas suposições.

            Uma tese, fortemente refutada em Portugal, é a de que o lundú, (dança obscena dos negros congoleses, importada no Brasil e em Portugal) seria o predecessor imediato do fado.

            Pinto de Carvalho (Tinop), em História do Fado, 1903, refere que o fado teria “nascido a bordo, aos ritmos infinitos do mar, nas convulsões dessa alma do mundo, na embriaguez murmurante dessa eternidade de água”.

            Em seu livro Fado, 1941, o poeta José Régio, reafirma essa idéia: “O fado nasceu num dia / Em que o vento mal bulia / E o céu o mar prolongava, / Na amurada dum veleiro, / No peito dum marinheiro / Que estando triste, cantava” (poema Fado Português), com a qual Amália concordaria, não só interpretando de forma convincente  o poema musicado por Alain Oulman, bem como reafirmaria a seu biógrafo: "para mim o fado é muito mais antigo do que essas teorias que dizem que veio do Brasil. O que eu acho é que as pessoas se queixavam e daí nasceu o fado. Nisso, concordo com o José Régio. É nesta história que eu acredito. Escolhi esta, que me agrada, que me parece a mais certa. O fado é saber que não se pode lutar contra aquilo que temos. É aquilo que não podemos mudar. É perguntar porquê e não saber porquê. É não deixar de perguntar e, ao mesmo tempo, saber que não tem resposta".

            Ao que tudo indica, o fado teria surgido mesmo em Portugal após o regresso da corte em 1822, quando o fado, além de cantado, também era dançado. Um fenômeno cultural urbano e de Lisboa. Tornou-se popular através da mítica Severa (1820-1846), que reinou absoluta em seu tempo e até hoje permanece no imaginário português. O mito da Severa se perpetuou como tema de opereta, peça teatral, filme e, claro, letras de fado - até o surgimento de Amália.

            Morta Amália, contrariando os prognósticos críticos e maus agouros, o fado continua vivíssimo. Renovado (sem "desfigurar-se"), sempre fado, sobrevive muito mais pelos méritos artísticos de compositores, músicos e jovens cantoras(es) surgidos nas duas últimas décadas do que, como preconizou o crítico em 1974, "no fundo de suas limitações".           Muitas dessas vozes, como Amália, também ultrapassam seu território natal e são igualmente aplaudidas em espaços nobres de outros países.  Dulce Pontes, Mísia, Mariza, Tereza Salgueiro, Ana Moura e Camané são alguns desses exemplos notáveis que contribuem para que o Fado se (re)confirme como "canção nacional", dando razão a Miguel Torga que anotou em seu Diário, já em 1949 “Fados. Fados em todos os estilos e sentimentos. Quer queiram, quer não, em arte, o melhor que Portugal deu na época presente, foram fadistas. Nenhum criador se levantou à altura das nossas cantadeiras. A Maria de Noronha, a Amália e a Hermínia, são agora o Antero, o Eça e o Oliveira Martins."

            Fazendo coro com o grande escritor, diríamos que as "cantadeiras" Mísia, Mariza, Dulce Pontes e Ana Moura são agora o Pessoa, o Sá-Carneiro, o Almada-Negreiros e o José Régio, expressões máximas do modernismo literário português.

            Neste ano de 2011, os portugueses aguardam o pronunciamento positivo da UNESCO  à candidatura do Fado na lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, contando não só com o empenho de todas as instâncias governamentais de Portugal, como de um grande apoio popular. 

            Na esteira da candidatura a patrimônio imaterial, o mercado trata de promover como nunca a canção portuguesa. A FNAC, estampa o logo "Fado - Património da Humanidade" num catálogo histórico que reúne um espantoso elenco de aproximadamente 30 artistas e outro tanto de CDs e DVDs disponíveis em seu estoque. 

            O fenômeno do fado estar "na moda" em Portugal não é exatamente recente. Em 31.12.2009, o Jornal Expresso noticiou que o álbum "Amália Hoje" foi o disco mais vendido em Portugal durante mais de vinte semanas após seu lançamento, em abril daquele ano. De acordo com aquele veículo de comunicação, os projetos ligados à canção nacional "multiplicam-se e são cada vez mais rentáveis. Surgem iniciativas que misturam o fado com outros gêneros musicais. Vai-se além da música e investe-se em áreas como o vinho, as peças de arte e a cinematografia. Tudo projetos ligados ao fado e a resultarem em sucesso".

            O fado é realmente português? O fado realmente expressa um determinado "temperamento português" que incluí a saudade e o fatalismo? Essas perguntas, elaboradas ao longo de muitos anos, parecem não fazer, hoje, mais sentido, conforme assinala, com propriedade, Mário Anacleto, em seu livro Fado, Itinerários de uma cultura viva, recentemente publicado (2008, ed. Millbooks, Portugal): "Nunca se pergunta se o Lied é alemão, porque é, se a Jota é espanhola porque é, se a Napolitana é de Nápoles, porque é, se o Samba é brasileiro... claro, só pode ser!... Então porquê perguntar se o Fado é português, se ele é! Claro que é! Ninguém canta o seu próprio fado como o português."

            Mas, afinal, mudou o fado ou mudou Portugal? Mudaram os sentimentos ou a forma de cantá-los? Se antes o fatalismo era determinante nas letras do fado, como em Fado da Maldição, de Alfredo Duarte e Armando Vieira Pinto ("É lucidez, desatino / De ler no próprio destino / sem poder mudar-te a sorte") composições recentes, como  Os Búzios, de Jorge Fernando, tentam negá-lo (“Vê como os búzios caíram / Virados p´ra Norte / Pois eu vou mexer no destino / Vou mudar-te a sorte”), sem, entretanto, dispensar o caráter trágico passional que desde sempre refletiram e que atinge, no meu modo de ver, sua mais alta e significativa expressão de tragicidade, neste verso de Amália, com música de Carlos Gonçalves:  "se eu soubesse que morrendo / Tu me havias de chorar / Por uma lágrima tua / Que alegria, / Me deixaria matar").

            Foi ouvindo o fado Estranha Forma de Vida, ("Que estranha forma de vida / Tem este meu coração / Vive de vida perdida, / Quem lhe daria o condão? Que estranha forma de vida"),  de e com Amália, que recebi do poeta Tarso de Melo o desafio: porque você não escreve sobre isso? A princípio não tomada como tal, acabei incorporando a provocação que foi tomando forma e agora caminha para se transformar em um livro de poemas e textos que levará o título de estranhas formas de vida. Todos os poemas trazem epígrafes retiradas de letras de fado, mas as tragédias e as paixões são recriadas a partir de histórias recolhidas nos dias de hoje, poemas para serem lidos em silêncio, como se ouve o fado.  

 

identidades  

       Navegando em mar de trevas
       
Com meus sonhos de menina
       Triste sina
” 
            Triste Sina, Jerónimo Bragança e Nóbrega e Souza

quinze anos e dúvidas
(para além das usuais)
a menina
com duas mães, cresceu
biológica, uma
(que a gerou, pariu e amamentou)
companheira da mãe, a outra

a mãe que a gerou, pariu e amamentou
mudou de gênero e identidade. a
menina passou a chamá-la de pai
(volta e meia, ainda lhe escapa um
mãeeeê!...)

 

homem-placa  

                Há-de haver quem te defenda
                 
Quem compre o teu chão sagrado
                 Mas a tua vida não

                   Povo que lavas no Rio,  Pedro Homem de Melo e
                   Joaquim Campos

o homem
(sentidos ausentes)
anúncio-mudo-trêmulo
posta-se no cruzamento
suspeito
(nadas ao vento)

o corpo-estandarte
alugado, aguarda
(olhares perdidos), o
fim da jornada, o
curto soldo
incompatível
com tão longo dia

 

são sebastião menino        

        O medo mora comigo,
        
(...)
         É com silêncio que fala,
         (...)
         Gritar quem pode salvar-me
         Do que está dentro de mim

                Medo, Reinaldo Ferreira e Alain Oulman

bêbado, o padrasto
embriaga o menino
algoz de suas mágoas

dois anos apenas
trinta e duas agulhas
alojadas no pequeno corpo
(silenciosa e invisível
a morte arquitetada)

ao espetar a carne tenra
vinga-se de outra
carne negada da mãe

 

qual o modelo?

     Não sei, não sabe ninguém” 
           
Foi Deus
,  Alberto Janes

 
 
- qual o modelo que tu queres de mim?  
- qual o modelo afinal?  

- qual o modelo?
 
- qual o modelo?
 

- qual o modelo?  

grita a jovem, olhar no vazio

no topo das escadarias do metrô

 

qual o modelo?... qual o modelo?... qual o modelo?...

a pergunta/mantra

ecoaaaaaaaaaaaaa

subterrâneos adentro

embarca

ao lado dos passageiros

mudos

carga extraordinária ao final do dia

 

Texto publicado na revista nanico 22 - Homeopatia literária, maio 2011, SP     

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