DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 Pessoa e Saramago e Saramago
A palavra (re)veladora

                          

                        
Quando recebi o honroso convite para participar desta solenidade de abertura da Semana da Universidade Aberta, que leva por título Saramago e Pessoa – Para ver o Invisível, fiz a mim mesma esta pergunta: que tipo de contribuição poderia eu, poeta municipal, acrescentar a esta Semana, tendo em vista a alta competência dos que me sucederão, professores e estudiosos com embasamentos científicos, sem falar daqueles outros milhares de aprofundados e definitivos estudos que, mundo afora, já foram escritos e publicados acerca de Fernando Pessoa e José Saramago, senhores donos da palavra, fundador da moderna poesia de língua portuguesa o primeiro, e o nome de maior estatura da moderna ficção portuguesa, o segundo?

Pensei ainda que, muito provavelmente, enorme é a distância que vai do que sou e daquilo que posso oferecer, àquilo que, eventualmente, esperam de mim.

Saramago diria que “Não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante”. Como era preciso enfrentar o desafio que a mim fora proposto (metaforicamente, para mim, representado pelo tal elefante), resolvi, ao fim e ao cabo, ser o que sou:  simplesmente uma leitora de Pessoa e Saramago, e passo a falar justamente de minhas impressões de leitura, valendo-me, em boa parte, das anotações que costumeiramente faço à margem das páginas lidas.

Ao nível das imagens, impossível seria traçar um paralelo entre ambos.

Pessoa, no dizer de seu heterônimo Álvaro de Campos, era um “novelo embrulhado para o lado de dentro”, um homem introspectivo, presença física quase invisível, avesso a vida literária ou social.  “O Fernando Pessoa sente as coisas, mas não se mexe, nem mesmo por dentro”, disse ainda Álvaro de Campos. Ganhava (mal) a vida como correspondente de línguas estrangeiras em escritórios comerciais e, à noite, munido de mortal combustível, escrevia com fúria, quase em transe. “Tudo o que em mim sente, está pensando”, disse. Contraditório e fingidor que era, no sentido metalingüístico da própria poesia, também pregava o sentir e não pensar (“a única realidade da vida é a sensação”). Sentia, pensava e escrevia o que pensava, quase sempre através da voz de seus heterônimos, cerca de 70, dizem os estudiosos. Precisou ser muitos para que o próprio Eu permanecesse invisível.

Pessoa não só pensava como fazia faz pensar seus leitores. Conforme aponta Carlos Felipe Moisés, pessoano emérito e reconhecido, curador da atual mostra no Museu de Língua Portuguesa, “Pessoa não nos acaricia a sensibilidade nem nos convida ao devaneio, mas simplesmente desafia, provoca nossa capacidade de raciocínio, seja para compreender, seja para refutar suas “teses”, no geral cristalizadas naquelas frases emblemáticas, taxativas, que todos sabemos de cor. Assim, ao ler Pessoa, diz ainda Moisés, não há leitor que não se sinta mais “inteligente” do que é – mas isso ninguém ousou confessar, até que Vergílio Ferreira, grande romancista e ensaísta, o fizesse”.

Saramago, ao contrário, foi um escritor que pensava e dizia o que pensava, não só pela voz de seus personagens, mas de viva voz. Um escritor que foi além da letra, exerceu o papel de um intelectual comprometido com o seu tempo. (“Eu nunca separo o escritor do cidadão. E isto não significa que queira converter a minha obra num panfleto. Significa que não escrevo para o ano 2427, mas sim para hoje, para as pessoas que estão vivas. O meu compromisso é com o meu tempo”). Foi uma voz combativa contra as desigualdades sociais, presente em todos os momentos cruciais da vida no planeta. Ele era sua própria literatura, sem planfleto.

Fernando Antonio Nogueira Pessoa, ou simplesmente Pessoa, morreu aos 47 anos, em 1935, quando Saramago tinha 13 anos de idade. Ainda que reconhecido por seus pares, sua morte passou praticamente despercebida pelo grande público. Talvez valha a pena assinalar que, apesar de ter publicado em vida apenas um livro, Mensagem, no período que vai de 1912 a 1935, ano de sua morte, publicou em jornais e revistas do modernismo português como Orpheu, Presença, Athena, Exílio e outras menos conhecidas, um número considerável de textos. Para sermos mais precisos: 132 em prosa e 299 de poesia, conforme referido pelo escritor David Mourão-Ferreira, em uma conferência em São Paulo. O que, diga-se, não foi pouco e que, se reunidos, resultariam em alguns alentados volumes. Além disso, em sua mítica arca, deixou exatos 25.455 de originais, catalogados pelo Ministério da Educação, em 1972. Boa parte desse assombroso volume de textos ainda se encontra inédita.

José de Souza Saramago, ou simplesmente Saramago – morreu aos 88 anos, neste ano de 2010 (viveu 41 anos a mais do que seu conterrâneo Pessoa) e conheceu a fama e a glória, inclusive, ao ser galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro a um escritor de língua portuguesa. Se tivesse morrido com a mesma idade de Pessoa teria passado completamente despercebido do grande público, uma vez que só se fez conhecido como escritor por volta dos 60 anos. O melhor de sua obra, no meu entender, foi escrito na maturidade.  Ainda assim, foi prolífero: deixou uma vastíssima obra, composta por 16 romances, livros de poesia, crônicas, contos, diários, teatro, que totalizam cerca de 35 títulos, sem contar o enorme volume de entrevistas e textos publicados esparsamente e, nos últimos tempos, num blog que assinou na Internet.

Já que não os podemos comparar ao nível de imagens públicas, passemos a observar paralelos entre suas poderosas linguagens. Vamos, digamos assim, a alguns apontamentos numa tentativa de estabelecer um recorte que nos aponte para uma  possibilidade de ver o invisível na obra e na humanidade de ambos, ainda que por caminhos muitas vezes um tanto quanto oblíquos, ou seja, a leitura de textos em que o aparente dizer exato remete a inexatidões, ou vice-versa, textos em que a aparente palavra inexata remete a surpreendentes exatidões.

No romance O ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago faz uma biografia de Ricardo Reis, heterônimo de Pessoa que há 16 anos residia no Brasil e volta a Portugal após a morte de seu criador. Além de prestar um altíssimo tributo a Pessoa (“a minha relação com Fernando Pessoa começou por ser com a poesia de Ricardo Reis, por ser ele “senhor da palavra, em vez de ser esta que o influenciava a ela” diria posteriormente Saramago), o romance traça um retrato de Portugal já em plena ditadura salazarista, em 1936.  Saramago coloca o personagem RR em contato com essa realidade, ao ler, por exemplo, os jornais da época, já comprometidos com o poder ou quando descreve a realidade social que vai observando em Lisboa. Ou seja, ao falar de literatura e de personagens que são fruto unicamente da imaginação do poeta, Saramago levanta véus e revela aspectos invisíveis da história real. Este foi, por coincidência, o primeiro livro que li de Saramago, em 1985 e sua leitura foi realmente impactante. Não só pela temática e pela admiração que eu já nutria por FP, mas também pela inovadora linguagem, que já ali apresentava, seu terceiro romance de grande sucesso. Uma técnica narrativa peculiar, de longuíssimos parágrafos e pontuação ou inusitada ausência de pontuação, estilo que viria a radicalizar nas obras subseqüentes. Aliás, esse desvendar (ou revelar, tornar visível, para permanecermos em nossa temática) aspectos históricos e religiosos através de personagens literários (a aparente contradição entre a verdade sempre parcial e discutível do discurso histórico e o ficcional),  seria a tônica de grande parte de seus romances. É o próprio Saramago, nesse mesmo ano de 1985, quem diz em entrevista à imprensa: “Se não ligasse o meu trabalho à História não faria qualquer trabalho (...) o que eu quero escrever liga-se aos fatos e aos homens passados, mas não em termos de arqueologia. O que eu quero é desenterrar homens vivos. A História soterrou milhões de homens vivos.”.

Quem sabe não estaria  aqui uma chave da porta de entrada para a obra de Saramago, revelar aquilo que há de humano nos homens.

Se me permitem, passo a ler alguns trechos que selecionei das obras de Pessoa e Saramago, à guisa de pinceladas para um possível esboço de retrato dos artistas e seu pensar, por eles mesmos:


José Saramago

- Mas é preciso compreender que nas circum-navegações da vida uma brisa amena para uns pode ser para outros uma tempestade mortal, tudo depende do calado do barco e do estado das velas

- As coisas que parecem ter passado são as que nunca acabam de passar

- há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa.

- Quem paga julga que o dinheiro confere e confirma todos os direitos

- Vivemos em uma cultura da frivolidade. Sabemos que 90% ou mais das mensagens que circulam pela Internet não têm importância nenhuma, ainda que a vida também seja feita de banalidades. Passamos por uma situação em que acabamos por confundir a realidade com a imagem dela. Nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como agora. Pessoas aprisionadas vendo sombras e acreditando que são realidade

A Internet comunica muito menos do que aquilo que se imagina. Para que haja comunicação, penso que é necessário que o outro esteja perto de nós.

E, finalmente, nos revela uma pérola do seu pensamento:

- Para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta


Fernando Pessoa
:

- Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? / Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! / E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

- Ó Mar Salgado, quanto do teu sal / São Lágrimas de Portugal / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!  / /  Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é  pequena. / Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor. / Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu

- Todas as cartas de amor são / Ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridículas. / Também escrevi em meu tempo cartas de amor, / Como as outras, / Ridículas. / As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas. / Mas, afinal, / Só as criaturas que nunca escreveram / Cartas de amor ; É que são / Ridículas

- A espantosa realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias

- Ah, o horror de morrer! / E encontrar o mistério frente a frente / Sem poder evitá-lo, sem poder

- “Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros / Onde quer que estejamos. / Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros / Onde quer que moremos. Tudo é alheio / Nem fala língua nossa

- Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? (lido na íntegra)

Fico por aqui, deixando com vocês estas humanidades reveladas, desassossegos da palavra desses dois gigantes escritores que, ao lado de Camões, também já são sinônimos da própria língua portuguesa, pátria de ambos.

 

E se me permitem, e o meu tempo não estiver esgotado, gostaria de ler dois poemas de minha autoria, que fazem parte de uma série denominada poemas pessoanos, publicada no livro À Janela dos Dias, justamente por resvalarem nessa questão do invisível ou do não revelado:

 

Múltiplos

      “Multipliquei-me, para me sentir / Para me sentir, precisei sentir tudo”
 

A carga de ser tantos - peso imenso
verga o dorso - defesa e prazer
antecedendo a tragédia.
Qual, na verdade, permanece?
Aguarda?
Subordinação estratégica
essa
a do eterno adiar.
Nem todos suspeitam
da função transgressora
(ou postura ética?)
do não se revelar.

 

Fingir-se

   “Fingir-se é conhecer-se”

Nas muitas fantasias
e feições desenhadas
os múltiplos se fizeram súditos
encruzilhadas...
Recolho as máscaras
dramático gesto
à morte dos personagens.
Dos que fui, já não sou
resta um narrador
contando inverossímeis estórias.


É isso. Como Bandeira, eu diria: perdoem, pois não pude ser outra coisa.

Texto apresentado por DTV por ocasião da abertura do evento Saramago & Pessoa – Para ver o invisível, promovido pelo SESCSP e Universidade Municipal de São Caetano do Sul, SP.

SCS 17.09.2010 

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