DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 O POETA E A CIDADE 

Anotações para uma conversa (*)  

As relações entre o poeta e a cidade, ou o que disso resulta, são muito antigas, mas é na modernidade, compreendida a partir do início da segunda metade do Século XIX, que Charles Baudelaire, precursor do simbolismo e, coincidentemente, contemporâneo das grandes reformas na cidade de Paris, ousa colocar a cidade como tema na lírica de então. A cidade não apenas sob a ótica daquele que a observa "do alto de uma janela da mansarda", nem aquele que nela vê o pitoresco, mas aquele que percorre as suas ruas e nelas vê e aponta a decadência em meio ao autoproclamado progresso. Aponta e acusa "a cidade que se vai transformando, mas também se perdendo".

 

"Paris muda! Mas nada em minha nostalgia

Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos,

Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,

E essas lembranças pesam mais do que rochedos.

 

Já disse alguém que as grandes cidades do Século XIX só poderiam ser descritas pelo sentimento de espanto e fascínio (inquietação e estranhamento). Se Baudelaire não foi o primeiro poeta a valer-se da cidade como tema, foi sem dúvida o poeta inaugural da modernidade e de um determinado processo estético que influenciou alguns dos grandes que vieram depois, inclusive Mallarmé. Foi Baudelaire que reconheceu na cidade o lugar da história e da literatura moderna e, conforme Benjamin, um "poeta desgarrado, vivendo ao mesmo tempo no presente e na vida anterior".

 

Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde

O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!

Flui o mistério em cada esquina, cada fronde,

Cada estreito canal do colosso possante.

 

Poetizar a cidade não só significa assumir todo o fascínio que dela emana, mas também a repulsa do cidadão impotente diante da sua marcha tida como ‘progresso".

 

A rua em torno era um frenético alarido.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido

 

Ir a Baudelaire para entender as relações entre cidade e poesia, implica ir obrigatoriamente a Walter Benjamin, que não só analisa e interpreta Baudelaire ("Charles Baudelaire – um lírico no auge do Capitalismo" – mescla de crítica literária e análise histórica e sociológica), como também faz da cidade objeto de sua própria obra, que tem em Passagens melhor exemplo. E aqui faço um pequeno parêntesis:

 

(Em meados dos anos 30 do Século XX, Benjamin coloca as chamadas "passagens" parisienses, surgidas na primeira metade do século XIX, como precursoras das lojas de departamentos. A transcrição de um texto de Um Guia Ilustrado de Paris da época, transcrita por ele, bem exemplifica suas funções: "Estas passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de vidro e com paredes revestidas de mármores, que atravessam quarteirões inteiros, cujos proprietários se uniram para esse tipo de especulação. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem a luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura."

Ora, se "as passagens são o centro das mercadorias de luxo (...) e os contemporâneos não se cansam de admirá-las" fácil se torna deduzir que ambas (passagens e lojas de departamentos) são, por sua vez, precursoras dos nossos Shopping ou Centros de Compras. Neles, além de comprar, vive-se, ou seja, come-se, bebe-se, diverte-se (cinema, shows, teatro), leva-se a roupa a lavar, a consertar, deixa-se o carro na oficina e na lavagem, corta-se o cabelo, faz-se a manicure, a maquiagem, consertam-se aparelhos elétricos, malha-se o corpo na academia e, em alguns deles, também se dorme (já existem, como se sabe, hotéis instalados nesses templos contemporâneos).

Assim, essas verdadeiras cidades privadas que, ilusoriamente, passam como públicas (não podemos esquecer que ali, mais do que em qualquer outro lugar, o sistema do panóptico está presente, vigilância interrupta através das câmeras e dos homens trajados de negro) representam o substitutivo da cidade real, posto que esta não mais se presta ao caminhar, cada vez mais vem sendo pensada em função do automóvel.

Assim, Benjamin parte das passagens, para registrar e historiar toda uma época (que, decorrido quase um século, como se vê, é também a nossa) feita de passagens de toda espécie (exteriores e interiores, visíveis e não visíveis), passagens que possuem no fetiche da mercadoria, toda sua lógica ideológica, razões que o pensador analisa à luz das idéias de Marx e, quem diria, do poeta Baudelaire que tão a sério levou sua flanância pela cidade.)

Baudelaire e Benjamin: A cidade como matéria, anotada nos seus fragmentos, a cidade lida e treslida pelo flâneur ("O flâneur como tipo o criou Paris"), que se posta nas passagens/shoppings e dali faz seu observatório. O anotador que mostra, retalha e deixa as vísceras da cidade à mostra, apontando aquilo que lhe vai por dentro.

Em língua portuguesa, é na primeira metade do Século XX que a relação do poeta e a cidade se dá mais fortemente. Podemos citar como exemplos Fernando Pessoa, em Lisboa, Mário e Oswald em São Paulo, Bandeira no Recife e Rio de Janeiro e Drummond, seguramente o nosso maior poeta urbano, aquele que viu, registrou, refletiu, profetizou e poetizou a degradação da vida moderna na grande cidade.

 

Domícilio

.... O APARTAMENTO abria

Janelas para o mundo. Crianças vinham

colher na maresia essas notícias

da vida por viver ou da inconsciente

 

saudade de nós mesmos. A pobreza

da terra era maior entre os metais

que a rua misturava a feios corpos,

duvidosos, na pressa. E do terraço

 

em solitude os ecos refluíam

e cada exílio em muitos se tornava

e outra cidade fora da cidade

 

na garra de um anzol ia subindo,

adunca pescaria, mal difuso,

problema de existir, amor sem uso.

 

Aqui ao lado, reside um expressivo poeta, Tarso de Melo, que de há muito ultrapassou nossas fronteiras regionais e vem sendo reconhecido Brasil afora como um dos mais talentosos poetas de sua geração. Poeta dono de uma dicção e linguagem sofisticadas, Tarso exige um certo esforço de seus leitores para que os símbolos de sua poesia sejam plenamente decifrados. O tema do cotidiano e suas mazelas e tensões se faz presente muito em especial em seu mais recente livro de poemas, Lugar Algum com uma teoria da poesia, de um retiramos este luminoso exemplo:

 

não deixa de ser

estranho, incômodo

passar sobre os carros, ter

a Riachuelo sob os pés

 

não deixa de ser útil

imaginar nessa vidraça

a tela em que passa

a ficção dos mendigos

em fila aguardando

o almoço comiserado

 

não deixa de espantar

saber que não posso

desligar (ou mudar de canal)

essa passarela a cores

 

A poesia, neste caso e em muitos outros casos, além de seu valor artístico, também pode atuar como uma espécie de contraponto aos meios de comunicação, à propaganda e ao marketing de nossa tão conturbada época. Uma outra via de registro que, não apenas reúne o olhar e a respectiva visão de mundo do poeta, como também busca valores, sociais e estéticos. Não só aquilo que se diz importa na poesia, mas também a forma como se diz. Assim, a linguagem e a própria disposição do poema na página que, por sua vez, remete a uma proposta estética, também são características da poesia contemporânea. A poesia praticada hoje é resultado de um amálgama que reúne a tradição, as chamadas vanguardas e a criatividade pessoal de cada poeta. Os poetas contemporâneos não mais representam uma Escola ou um Movimento, são, antes, vozes individuais e dissonantes que, no seu conjunto, formam a literatura de um país.

É possível, entretanto, encontrar bons poetas contemporâneas que não se valem do cotidiano como matéria para poesia, mas constroem seus poemas com matéria retirada puramente da imagética e do confessional. Como já disse Gil, o nosso poeta da música, "na lata do poeta tudo nada cabe".

No que respeita à poesia que pratico, devo dizer que a cidade, a grande cidade, que é onde vivo, em constante processo de transformação, com seus contrastes, tensões, conflitos, é matéria que me fascina e que, via de regra, transformo em poesia.

Como disse Benjamin, referindo-se à Paris do século XIX, eu diria que a cidade, a minha e aquelas por onde transito, é uma "grande sala de espetáculo e exposições" e que em mim exerce o mesmo fascínio que exercia no poeta de há 150 anos.

 

Mais do que em livros anteriores, em Retratos Falhados (Editora Escrituras, SP, 2008), meu mais recente livro, a cidade está presente, no seu exterior, como neste poema:

 

Becos

quem tem caminho reto não se mete em vereda, aconselhava-me a mãe, o medo do sobressalto a escorrer do afeto, sem saber que as descobertas se revelam apenas no entrecruzar do caminho e a conquista à saída do labirinto

os becos e seus inocentes nomes de santos não atendem à demanda de mercado, insignificantes artérias esquecidas, deixam que a cidade cresça ao seu redor e ficam ali, pulsantes e vingados, tênues sopros de resistência e muda contestação, negação ao gigantismo, sedução para o não cumprimento do conselho

Bem como no seu exterior/interior, como neste outro poema:

 

menina

com sua caixa de papelão ordinário a menina atravessa o mar de velocidades, indiferente às buzinas e freadas. vez ou outra, mãos projetam-se para fora das janelas dos bólidos urbanos, retiram um doce da caixa, deixando em troca uma moeda. saltitante, a menina entrega o resultado do negócio à mulher adulta, de verde olhar esmaecido, que a espera do outro lado da rua. no seu descuidado tempo infantil, a menina dos verdes olhos verdes retorna alegremente ao alegreverde saltitar, cumprindo, sem o saber, o seu tristeverde fado

Ou, ainda, no seu interior, como neste poema:

 

Das mortes

 

da primeira vez que te vi morrer

, a lembrança do horror:

teu corpo (ainda) morno e nu

na pedra fria

e

a marca da dor

num rosto que já não era o teu

 

da segunda vez que te vi morrer

, o torpor das exéquias:

pesadelo da tarde sem ar

sensação de estrangulamento

 

da terceira vez que te vi morrer

, o choque e o estranhamento:

teu nome citado no templo

na oração aos defuntos

 

da última vez que te vi morrer

, a dor fina e lancinante:

o descarte dos teus pertences

a certeza do nunca mais

nunca...

(a morte também em mim)

Dalila Teles Veras

Museu de Santo André Dr. Octaviano Gaiarsa, 16.04.09

 

Bibliografia:

- Baudelaire, Charles - As Flores do Mal, Editora Nova Fronteira, 4ª. edição, 1985

- Benjamin, Walter - Charles Baudelaire um lírico no auge do Capitalismo (Obras Escolhidas III) Editora brasiliense, 1989

- Benjamin, Walter – Passagens, EditoraUFMG/Imprensa Oficial SP, 2007

- Andrade, Carlos Drummond, Poesia e Prosa, Editora Nova Aguilar, 1979

- Melo, Tarso de, Lugar Algum com uma teoria da poesia, Alpharrabio Edições, 2007

- Veras, Dalila Teles, Retratos Falhados, Editora Escrituras, SP, 2008

Roteiro de palestra proferida por dtv no Museu de Santo André Dr. Octaviano A. Gaiarsa, dia 16.04.09

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