DAlila Teles Veras

Palestras e Debates

 Cidadã Andreense

 

Antes de mais nada, gostaria de dizer que me sinto profundamente honrada com a decisão unânime dos senhores vereadores em conceder-me este título e, sobremaneira, de poder compartilhar esta alegria e esta emoção com todos os presentes.

Devo confessar que o sentimento de júbilo por esta honraria, vem juntar-se àquilo que, no fundo da minha alma, já era uma certeza, a de verdadeiramente ser uma cidadã andreense.

Após portar, por mais de 40 anos, um documento denominado RNE (Registro Nacional de Estrangeiro) que atestava minha permanência definitiva no Brasil, mas que, de certa maneira, causava-me constrangimentos, quando periodicamente exigia-se que o mesmo fosse renovado, decidi, em 2002, solicitar legalmente a igualdade de direitos políticos, a chamada dupla cidadania luso-brasileira, conquista que este título vem ratificar, de forma gratificante e, o que é melhor, espontaneamente, sem que preciso fosse solicitá-lo. Agora, portadora de um RG verdinho, cheirando ainda a novo, igualzinho ao dos senhores, meus irmãos brasileiros, e juntando-se a ele, este diploma, que atesta a minha cidadania andreense, sinto que se crava em minha existência, uma chancela definitiva de brasilidade, sem, contudo, deixar nem renegar a minha origem, a naturalidade lusa, da qual também muito me orgulho. Numa antologia de poemas de poetas portugueses e brasileiros em homenagem a Fernando Pessoa, publicada recentemente, na qual constam 3 poemas de minha autoria, sou identificada da seguinte forma: dtv, escritora brasileira, nascida em Portugal. Eis aí a chave para uma possível identidade: Portuguesa, porque as raízes atávicas fazem-se presentes cotidianamente, gosto da boa mesa, de cosido à portuguesa, de azeite de oliva, de um bom vinho, de Fernando Pessoa, José Saramago e do grande Camões e, herança navegadora, desejo sempre saber o que há do outro lado do horizonte; Brasileira, porque, confesso, também gosto de caipirinha e de feijoada, gosto de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e de Murilo Mendes, pronuncio, entre outros muitos vocábulos, Antônio e não mais António, bem como não sei mais escrever à maneira de Portugal, troquei a ênclise pela próclise. Posso dizer que, cidadã eternamente dividida, cada vez mais amalgamadas ficam as raízes, as atávicas e as adquiridas.

Há terras, dizia o grande poeta português Miguel Torga, onde os homens pegam de galho. Pegar de galho, expressão camponesa em Portugal, significa fincar um galho de uma planta no solo e faze-la pegar, ou seja, enraizar, crescer, tornar-se frondosa, produzir frutos e sombra.

Pois bem, foi em 1972, ano do meu casamento com Valdecirio Teles Veras, nordestino, brasileiro, que conheci na Capital de São Paulo e primeiro responsável pelo meu ingresso na brasilidade, que finquei minha vida no solo andreense. Ano após ano, as raízes foram se agarrando a esta terra, sobretudo após o nascimento de nossas três filhas, Carolina, Isabela e Alice, andreenses da Vila Assunção, que aqui fizeram as primeiras letras, e, após seus estudos universitários, aqui também labutam como profissionais.

Uma cidade passa a ser nossa quando nos interessamos por ela, quando passamos a olhar para sua história, suas ruas, suas calçadas, seus monumentos, seus parques e nos reconhecemos neles, independentemente de ali termos nascido. Uma cidade se faz nossa quando nos interessamos pelo bem comum de nossos vizinhos, quando prestamos atenção a seus homens públicos, quando lhes cobramos prestação de contas de seus atos, quando lhes exigimos programas de governo compatíveis com as aspirações da comunidade.

Foi a partir da constatação de que aqui eu não mais era estrangeira que passei a defender, dentro do meu limitado campo de atuação, o direito de todos que aqui vivem, de conhecer esta cidade através de sua arte e de sua cultura, indicando, revelando, discutindo e incentivando manifestações artísticas de toda a ordem, por acreditar que não há salvação possível fora da arte e da cultura, no caminho de retomada de uma nova humanização em meio ao caos de violência e barbárie que o planeta insiste em instalar.

Para tanto, insisti, insisto e insistirei, na necessidade de todo o cidadão que aqui vive ter o direito de conhecer a história de seu bairro, de sua cidade, de sua região; conhecer quem são os seus artistas, os seus escritores, os seus homens de pensamento. Esta é uma brigada da qual todos temos que tomar parte, a literatura e a história local nos bancos escolares, como objeto de pesquisa, de auto-conhecimento e de auto-estima, espelho onde cada um se possa mirar e se reconhecer.

Em outubro de 1999, publiquei uma crônica na coluna Viaverbo que escrevi semanalmente durante 5 anos no Diário do Grande ABC, cujo título era A Cidade do Meu Desejo e que, por ser curta e pertinente a este nosso tema, peço licença para lê-la:

“A cidade do meu desejo será aquela onde se tenha direito ao trabalho e seja possível realizar o encontro e caminhar por calçadas amplas, mãos dadas com o companheiro(a), sem tropeçar em obstáculos e sem medo de assalto.

Na cidade do meu desejo, não haverá aberrações de arquitetura antimendigo e antiladrão, abomináveis invenções a substituir a invenção maior que é a de melhorar o homem e, quando necessário, aplicar-lhe penas que o possa recuperar e devolvê-lo mais humano ao seio da comunidade.

Na cidade do meu desejo, haverá transporte coletivo abundante para todos e o automóvel será um objeto quase obsoleto, não terá prioridades, obedecerá rigorosamente aos códigos estabelecidos e não será usado como arma nem símbolo de poder.

Na cidade do meu desejo, não haverá  confinamento e os logradouros públicos serão realmente públicos, sem grades nem cancelas, os parques serão parques e não prisões com vigias eletrônicos.

Na cidade do meu desejo, os cidadãos não precisarão cumprir os seus deveres apenas quando se souberem vigiados, mas saberão cumpri-los porque os mesmos já estarão incorporados aos seus hábitos éticos e culturais.

A cidade de meu desejo será aquela onde todos possam facilmente (re)conhecer os marcos de sua história, contados e recontados através de seus poetas e artistas.

Na cidade do meu desejo, haverá placas indicativas nas casas onde nasceram ou residiram pessoas que melhor contribuíram para a sua melhoria, forma de recordá-las como marcos culturais do lugar.

A cidade de meu desejo deverá estabelecer políticas públicas que propiciem o envolvimento dos cidadãos, criando pontos de contato entre suas culturas distintas, celebração de tolerâncias e diferenças.”

Esta minha cidade idealizada, acredito, só será plenamente construída quando os seus habitantes estiverem conscientes de que uma cidade é feita de cidadãos, cabendo a cada um, e não apenas aos governantes, fazer a sua parte na coletividade.

Para finalizar esta minha, confesso, emocionada fala, eu diria que, como já disse o poeta, nossa pátria é nossa língua, e foi com a palavra escrita e impressa, esse patrimônio invisível e tão menosprezado pela sociedade comandada por números, que armei meu frágil quartel de utopias em defesa das letras e da cultura desta cidade que elegi para viver, possivelmente, até o fim dos meus dias.

Gostaria, portanto, de partilhar este momento tão especial com cada um dos amigos e parentes que aqui vieram, mas de maneira muito particular, pedir permissão para dividir este título com um cidadão exemplar, muito mais gabaritado do que eu a recebe-lo, a pessoa com quem compartilho a vida e os sonhos e, com muita honra, também o próprio nome, meu marido, Valdecirio Teles Veras.

Muito obrigada.

Dalila Teles Veras

Câmara Municipal

Santo André, 17 de março de 2004

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