DAlila Teles Veras

Crônicas

Anotações de Leituras IV

 

sábado 25

Pessoa invocado nos 65 anos de sua morte, Pessoa entranhado quase cem anos depois da coca-cola, Pessoa engolido frio, como a dobrada que sempre deve ser quente mas, às vezes, é servida fria. Morin, Chardim e Gramsci na roda, cutucões salutares, inquietudes do espírito

segunda 27

"Ai que prazer, não cumprir um dever, ter um livro para ler e não o fazer!"... entro no poema de Pessoa e simplesmente cancelo todos os compromissos de hoje em nome da preguiça. não ir, só pelo prazer de não cumprir um dever... um pequeno ato de rebeldia degustado após um dia rotineiro e cansativo. ai que prazer...

quarta 27

"Esse Ofício do Verso", de Jorge L. Borges, é a leitura de bordo do Air Bus da Varig. 62 páginas depois, já em Salvador, confirmo a minha preferência pelo Borges pensador da poesia, do livro e da leitura, apesar da excessiva recorrência dos temas. instigante e provocador: "Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer". pragmático: "Temos de nos haver com a mitologia de nosso tempo. Pois as palavras significam essencialmente a mesma coisa". já se vê que isto está longe de representar um teórico a serviço do cientificismo crítico, antes, trata-se de um caso de paixão pela palavra escrita (e impressa)

sexta 29, Salvador

Livraria Grandes Autores: cenário. encontro baiano do imaginário cultural do ABC com o sincretismo cultural da Bahia. ao redor da fogueira das letras e dos afetos, as anotações diárias de quem só vive trabalho. violão e fagote, troca humana esticada noite afora, comilança de mariscadas no Paraíso Perdido (sem Milton nem literatura – só confraternização)

Pelourinho o coração da Bahia. Casa de Jorge Amado, o coração do Pelourinho. Jorge, patrimônio brasileiro, injustamente desprezado pelas chamadas vanguardas que, aliás, desconhecem este patrimônio, valor que já lhe foi conferido pelos 56 países dos 5 continentes que traduziram suas obras em 48 idiomas. Capas de todos os seus livros em incompreensíveis línguas, prêmios, comendas, fotos, edições com a chancela da Fundação: pura festa do espírito. Exu é o guardião da casa. Diz o texto afixado à entrada: "ele é alegre e brincalhão. Postado nas encruzilhadas, guarda as trilhas da cidade e as entradas da casa. Muito generoso, é também ciumento e, se contrariado, pode trancar os caminhos. Conquiste suas graças e ele será o seu guia nesta viagem fantástica. Se for de paz, pode entrar."

quinta 18

Viagem pelos sebos da Capital. comércio assim é falência certa. do pequeno lote garimpado, visando, a princípio, aumentar o estoque de novidades da Alpharrabio, vieram parar nas minhas prateleiras e não nas da livraria, ou seja, o possível lucro já foi gasto com antecedência. Dentre eles, duas pepitas há muito procuradas: Os Filhos do Barro, de Octavio Paz, surrupiado de minha biblioteca por um professor sem caráter que me pediu o exemplar emprestado por uma semana e há uns 7 anos está com ele. Esse título, publicado pela Nova Fronteira, há muito está esgotado e nenhum outro exemplar jamais passou por minhas mãos nestes anos todos após a infeliz idéia do empréstimo, ainda que tenha ficado atenta nas minhas freqüentes andanças pelos corredores empoeirados dessas mal iluminadas casas guardiãs de tesouros insuspeitados. Finalmente, junta-se ele aos outros títulos de Paz, autor que tanto aprecio. Pena que este não contém as minhas marcas de leitura que se foram com o outro exemplar. Paciência, eu o lerei novamente e deixarei ali a marca do meu corpo e daquilo que marcou o meu espírito. Outra raridade que há muito busco: "Sua Excelência o Cachimbo", de Carlos Alberto De Ranieri, um fabricante de cachimbos que levam o seu sobrenome, edição do autor e que há muito anda desaparecida das prateleiras. Acabo de ler o volume por inteiro, pois servir-me-á ele como rito de iniciação à arte de fumar cachimbo, fetiche há muito acalentado. Que diabo, uma vida regrada também deve cometer alguma transgressão. Às favas os alertas do Ministério da Saúde.

quinta 01

É preciso haver pausas na vida (Pessoa). Faltam pausas à minha. Pausas para reflexão, pausas para contemplar, pausas para o convívio, pausas para o simples conversar.

quarta 25

Professora nietzschiana confessa, mas isenta de ideologias filosóficas, defende o seu ponto de vista, sempre à luz do seu mestre. de cara, a professora inicia a sua palestra lendo o poema de Drummond, "havia uma pedra no meio do caminho" relacionando, não só o assombro do homem diante da pedra que o leva a tomar uma atitude crítica, refletir filosoficamente, como também reaproxima novamente a poesia da filosofia, tão distanciada anda ela perante a massa de não pensantes e não leitores, "que nos torna cada vez mais rasos, dadas as características de nossa época" "O que nos atinge é um saber descartável porque não podemos nos apropriar dele". Seria preciso "sair da situação receptiva e consumidora e assumir uma atitude ativa (questionar a nós mesmos antes de mais nada, desligar-nos do falso saber, daquilo que nos é dado). refleti sobre o que há muito constato

terça 15

Mais um "folgadinho" envia um pedido de socorro via Internet: Dalila: Olá, eu me chamo Carlos Henrique e estou cursando o 2º colegial, eu preciso fazer um trabalho de Literatura que é sobre a biografia (sic) do livro Os Maias, por favor se a senhora puder me ajudar... eu só tenho uma semana para entregar e tenho que passar a (esqueceu a crase) mão, só que eu não encontro em lugar algum a biografia (sic) do livro, por favor me ajude." mais um vez o aprendizado por osmose, a folga como ferramenta. tristes tempos.

sexta 25

Socráticas, de José Paulo Paes, poeta da minha predileção e da saudade. Trata-se de uma edição póstuma que certamente não havia sido deixada por ele em forma de livro, mas que foi coletada por sua mulher, a sempre presente Dora, incluindo um poema digitado no computador 24 horas antes de sua morte. Tirando alguns poemas do gênero poema piada ou satírico-sarcástico, fórmula que o poeta já esgotara, emocionam aqueles que falam da dor e da morte pressentida. Chorei de comoção e de saudade do Zé, que além de excelente poeta foi um gentil homem.

 

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