DAlila Teles Veras

Crônicas

Anotações de Leituras III

 

domingo 1

Edgar Morin à frente de suas sedutoras idéias sobre o amor, a poesia, a sabedoria, humanismo e a sua complexidade; lições desse admirável pensador da modernidade que a própria modernidade deverá rejeitar posto que, afinal, contesta com tanta veemência a adesão pura e simples aos seus enganosos (des)caminhos

segunda 28

em tempos onde só a literatura me salva, cai-me nas mãos o velho Rosa e torno a entrar pelas portas escancaradas do sertão e suas intermináveis e encantatórias veredas, cercadas de língua e humanidade. com a voz arrebatada de Riobaldo a noite é cavalgada veloz: "eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa".

terça 3

Veia Bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão, chega, sincrônica e oportunamente às minhas mãos e à minha leitura, numa surpreendente biblioteca de hospital. o ambiente é o mesmo: o drama literário e o drama real (o dele no livro, o meu em tempo real). a obra: um homem e seus medos diante de uma tijolada do destino, um escritor vestido de humanidade e de sua literatura. a leitora: a esperança de que a vida repita a saga do herói.

sexta 6

leio num outdor: Educação de Alta Tecnologia só na Faculdade X. tem razão Edgar Morin ("A Cabeça bem Feita"): "existe uma pressão superadaptativa, que leva a adequar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e administrativas do momento; a conformar-se aos últimos métodos, às últimas estimativas do mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a cultura humanista. Ora, na vida como na história, a superadaptação a condições dadas nunca foi um indício de vitalidade, mas prenúncio de senilidade e morte pela perda da substância inventiva e criadora". preocupada, devo concordar novamente com o pensador francês: "Não se trata apenas de modernizar a cultura: trata-se também de "culturalizar" a modernidade".

domingo 8

revisitar Sócrates, através de Platão, e tentar (re)aprender lições de pensar através de conceitos claros e seguros, repudiando idéias vagas e preconcebidas. aprender que o conhecimento deve ser algo vivo e dinâmico e sua construção deve reunir intelecto e emoção, sabedoria estritamente humana. sobretudo, evitar acreditar que se sabe sem saber

segunda 6

leio/ouço Hilda Hilst, Cadernos de Literatura, trazida pelas mãos dadivosas de outra poeta amiga. Hilda e sua poderosa voz, como jamais outra mulher o foi na poesia. a obscena senhora Hilda, amarga, linguaruda, pornográfica, erudita, profunda, elegante, erudita, poeta absolutamente indispensável

terça 14

pouca tinta, raros versos, muitos livros. beber do saber alheio que o próprio pouco vale (a prova disso é que surpreendo-me a plagiar a mim mesma – afinal, andamos sempre à roda dos mesmos temas - ou não?)

sábado 15

a literatura como modo de vida, misturada ao café da manhã, repartida com o dono da quitanda da esquina, esgueirando-se pelas notícias dos jornais diários, fabulando as mazelas cotidianas, dividida entre o capital e o trabalho, entre o real e o imaginário. em tardes frias assim, ouvir depoimentos de escritores que fizeram sua opção definitiva pela literatura é pílula estimulante

domingo 5

limpar e arrumar prateleiras de poesia assemelha-se, no meu caso, a tarefa de Sísifo. subitamente, o encontro com um livro mais querido impele-me a sentar no chão e... pronto, o pó fica ali, à espera de ser limpo. outra capa interessante aqui, outro título já esquecido na memória ali e, esquecida das horas, esqueço da arrumação, tarefa sempre recomeçada. a diferença: no mito grego a tarefa é infrutífera e eterna; no meu caso: deixa páginas e versos colados à memória e tem caráter de finitude, posto que é tarefa humana

terça 14

(re)leio o sempre amado poeta da minha infância, declamado, então, com devoção e, hoje, tão injustamente preterido. tudo com intuito de preencher com algum conteúdo este veloz meio de comunicação, ainda tão mal utilizado, que é a Internet

sexta 24

o poder público procura a poeta e é Torga que me socorre, com a sabedoria de quem o disse aos quase 80 anos: "Nesta terra (e certamente nas outras), quando um governante bate à porta de um poeta nunca é para render preito à poesia. É para tirar partido do algum prestígio que ele ainda tenha".

quarta 22

um dia a navegar. velejar num mar de livros, seduzida pelo desconto de 50% e comprar mais do que posso ou poderei ler, pelo fetiche, pela idéia apenas de que um dia, por eles estarem, assim, à mão, poderei lê-los

 

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