DAlila Teles Veras

Crônicas

Anotações de Leituras II

 

sexta 23

o interfone sacode o estado de quase torpor provocado pelo mergulho na leitura e na escrita. a voz, como que vinda de outra galáxia, anuncia que o mundo real carece de ações: o entregador, com a carne para o almoço, está subindo. que bom seria a vida sem tais banalidades

segunda 22

o que teria me comovido mais nesta friorenta segunda-feira de um outono quase inverno? a empolgação de 7 escritores a projetar sonhos de conquista de leitores ou a leitura dos poemas de Al Berto, poeta português que viveu pouco – a vida fulminada pela AIDS – e escreveu muito (e bem)? ficaria na dúvida se tivesse que escolher entre ler ou escrever. eventualmente viveria sem escrever, mas a vida sem leitura, seria morte certa

domingo 23

Edgar Morin: "No jogo em que tudo vale e nada se perde, em que se destrói para recriar, as religiões, o mito e a magia devem ser valorizados. o conhecimento racional, empírico e técnico deve conviver com o simbólico, o mítico e o poético". eu: entenderá assim a humanidade, adoecida de cientificismo pragmático e especializado?

quinta 27

Eduardo Lourenço, no Jornal de Letras, de Lisboa: "desde o romantismo, pelo menos, que a nossa mitologia cultural era de essência literária (...) uma das características do nosso imaginário cultural neste fim de século – sempre dentro de uma concepção elitista dele – foi a da inclusão nele de criações que sem serem de ordem literária se tornaram como elas figuras incontornáveis da nossa dimensão cultural. Penso naturalmente na pintura, na escultura, no cinema, na música, no canto, na dança, na arquitetura, no teatro." pergunto: e nós, seres suburbanos, à margem da metrópole, que mitologia seria a nossa, já que literária não é?

terça 22

novamente Torga, no volume XV de seu Diário: "Um político é um ator transviado, sempre à espera de palmas, e o poeta é um implacável espectador sempre de assobio pronto. E nem ele pode deixar de ser comediante, nem eu de lhe apupar a comédia". ó mundo vasto mundo velho, tão pequeno e tão igual!

quarta 23

só mesmo as artes da ficção literária podem operar esta mágica de sair momentaneamente do cotidiano opressor – viagem que, mais do que fuga, é vida,

quarta 28

filosofia e poesia: a poesia é uma forma de memória, pois conta, não só como foi, mas também como poderia ter sido. com o advento da transformação da crítica literária em crítica científica e da própria filosofia restrita a uma campo técnico e analítico, a palavra alma não consta mais de nenhuma filosofia e está confinada ao mundo da poesia e este, por sua vez, não é mais confundido com o mundo da filosofia, que, diga-se no período do mito filosofante (Medéia, Eurípedes, etc.) fundiam-se, até que a ciência viesse despoetizar o mundo. teria ainda a poesia a força encantatória daquele mundo antigo? teria a poesia ainda hoje o sentido de todas as viagens contido na Ilíada? podemos, assim como Homero, reavivar Tróia pela força da imaginação? Ao vivo, a filósofa colocou hoje todas estas questões a bailar nas cabeças presentes, mas, como sempre, sem dar nenhuma pista para as respostas, mesmo porque não cabe à filosofia dar respostas, mas provocar respostas

quinta 24

Eclesiastes: "todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir". nem por isso deixam de ser necessárias, como (re)ler a bíblia, tarefa tão penosa na juventude e, agora, (re)descoberta prazerosa e instigante

sexta 28

leio as errâncias do poeta concreto, palavra e discurso retomados, alguns rompantes de arrogância intelectual, invencionices esquecidas. aqui, o homem e suas paixões por detrás dos signos, sem medo das meras significâncias. uma literatura que nega mas retoma a palavra: o concretismo é já passado, a palavra (e o discurso) ainda reina, inclusive entre aqueles que a negaram

domingo 30

a palavra percorre todo este dia em forma de leitura e de escrita. letras, letrinhas, tipologias várias, papéis: fosco, brilhante, mate. preencher a existência com a palavra e o livro é não abrir mão da utopia da página impressa

quarta 9

o livro, após a criação solitária e o recebimento da tinta na letra de forma, é mercadoria à mercê mercantilista, quer queiram os sentimentos puristas ou não dos seus autores. a tarde toda dedicada a conciliar uma atividade inserida no mercado (mercantilista, portanto) sem abrir mão do rigor da qualidade literária, nem perder de vista propósitos que fomentem a leitura e fruição. ó sonhos, abri mão do mero sonhar e faça-se o caminho

sexta 1

a era de Guttenberg está no fim? o papel substituído pela máquina? não, o que está em cheque não é o fim do papel que, ao contrário do que se imagina, assume proporções de uso inaceitáveis, mas a questão da leitura, dos novos analfabetos úteis que não sabem redigir uma só oração. nunca se publicou tanto, mas publica-se o quê? o livro como suporte do quê? da literatura instrumental para uso imediato de trabalho? o que está em cheque é a tragédia da ilusão de que a máquina suprirá o conhecimento e, pior, substituirá o próprio homem

terça 12, Atenas

um hóspede do Hotel Stanley passa por mim, bandeja de café nas mãos e, nela... um livro. a manhã é de júbilo e celebração por ver este alimento, cada vez mais raro, ainda a fazer parte do menu cotidiano

 

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