DAlila Teles Veras

Crônicas

Anotações de Leituras I

 

sábado 15

passeiam meus olhos pelos alfarrábios e suas marcas, sinais ali deixados por olhares de outros tempos, olhos que lhes roubaram saber. fazem-se novos estes velhos livros, quando inaugura-os o meu olhar e a minha leitura

sábado 22

a língua falada distancia-se cada vez mais da língua escrita nos trópicos brasilis. devo escrever como falo/falamos ou falar como escrevo/escrevemos ou, ainda, preocupar-me com exercícios de linguagem, que só provocam a mais fria indiferença na esmagadora maioria dos mortais? para quem a palavra escrita?

terça 8

o conhecimento gera sedes de deserto e certezas de jamais saciá-las. tão pouca a vida para tanto conhecer, saber e projetar. pobres irremediáveis são aqueles destituídos da curiosidade intelectual, motor indispensável

sábado 12

a moça tímida quer saber como é que se faz poesia e pede receitas. a moça tímida circula por entre os poetas e deseja perscrutar-lhes as almas, arrancar-lhes segredos. os poetas esqueceram de dizer à moça tímida que desista de tentar desvendar os mistérios dos poetas e trate logo de fabricar o seu

terça 15

As Dançarinas Mortas, fascinante romance do espanhol Antonio Soler, lido num sombrio quarto hospitalar, invoca Lorca ("agora estou só, com meus espinhos") e a nossa precária condição humana, que o gênio criativo transforma em eco e espelho

quarta 23

só mesmo as artes da ficção literária podem operar esta mágica de sair momentaneamente do cotidiano opressor – viagem que, mais do que fuga, é vida, outra

segunda 28

em tempos onde só a literatura me salva, cai-me nas mãos o velho Rosa e torno a entrar pelas portas escancaradas do sertão e suas intermináveis e encantatórias veredas, cercadas de língua e humanidade. com a voz arrebatada de Riobaldo a noite é cavalgada veloz: "eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa".

sábado 11

Pessoa, o velho bruxo, tinha sempre razão, quando, em versos, na pele do amargo Álvaro de Campos, falava da morte e do princípio da morte da memória do morto: "Duas vezes ao ano pensam em ti" / "quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste / Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada". isso foi no começo do século. com a velocidade entrante em zeros, o esquecimento é já no dia seguinte

segunda 17

anuncia-se e louva-se o e-livro e as maravilhas operadas pela fabulosa maquininha de leitura já disponível no mercado, à qual é possível acoplar até assinaturas de jornais. a possibilidade de ler no escuro, sem sujar as mãos na tinta das páginas do jornal, encanta os aficionados em inutilidades eletrônicas, dispostos a pagar cerca de 270 dólares pelo brinquedo que em pouquíssimo tempo será descartável. e a maneira como se fala desse maravilhoso produto leva a crer que o dito cujo esteja prestes a invadir o planeta e queimar as bibliotecas tradicionais. na verdade, esqueceram de dizer que aquilo não passa de uma versão tecnológica para um produto que há 6 séculos não conseguiu arranjar substituto. tanto é que o simulacro de livro se diz livro também (e-livro) contém páginas ("baixar" a página na tela) e parte para, em breve, usar papel e tinta (e-tinta, e-papel). ler o e-livro é como assistir a uma ópera na tv. para quem nunca viu uma ao vivo...

terça 18

li em algum artigo uma citação de Goethe que foi tirada de um livro que, por coincidência, espera-me na fila aguardando leitura, "Viagem à Itália": "Aquele que relata tem de apresentar os eventos separadamente: mas como fazer com que isso forme um todo na alma do outro?" fiquei na dúvida entre colocá-la como epígrafe, ou simplesmente anotá-la aqui como uma identificação com a dúvida neste momento

domingo 7

no intervalo entre a leitura e escrita de papéis utilitários, a delícia de um verso de Murilo, sem utilidade nenhuma, apenas de puro prazer ("Dos braços do poeta / Pende a ópera do mundo / (Tempo, cirurgião do mundo): - / O abismo bate palmas, / A noite aponta o revólver.")

terça 9

entre as folhas de um livro velho de medicina, cartas antigas de um amor antigo: na primeira delas, a jovem estudante, desterrada num colégio interno, há longos e intermináveis 8 dias, suspira pelo amor deixado lá fora. na segunda, desespera-se, sabe que precisa estudar, mas faz-lhe falta a presença física do amado, suas carícias. à sensação de invasão de privacidade mistura-se uma certa formigação imaginária, atiçando interrogações: que teria ele respondido? foi ao seu encontro na Paraíba? casaram-se, afinal? formou-se a moça? encontrou outro amor? vivem? tudo é novidade naquilo que não se leu, inclusive aquilo que se escreveu e esqueceu entre as folhas do livro. uma sala de um sebo é também estação de embarque para viagens alquímicas da imaginação

quarta 14

enquanto o trigo amolece na vasilha à espera de ser pão, as todas as vozes de Ferreira Gullar entram-me nas entranhas suprindo todas as carências desta manhã. eis aí um grande poeta na sua plenitude de poetar. enquanto o trigo espera o fogo, o fogo da poesia do menino de São Luiz entra-me pelos becos da emoção, como há muito um poema não o conseguia

sábado 15

a literatura como modo de vida, misturada ao café da manhã, repartida com o dono da quitanda da esquina, esgueirando-se pelas notícias dos jornais diários, fabulando as mazelas cotidianas, dividida entre o capital e o trabalho, entre o real e o imaginário. em tardes frias assim, ouvir depoimentos de escritores que fizeram sua opção definitiva pela literatura é pílula animadora

 

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