DAlila Teles Veras

 

VESTÍGIOS

à memória de minha mãe, Maria de Lourdes,

que me iniciou nos caminhos da poesia

...o louvor dos mortos

é um modo de orar por eles.

Machado de Assis

 

 

Sofrer passa, o ter sofrido

permanece para a eternidade.

Sta. Teresa D´Ávila

 

 

Joy´s recollection is no longer joy,

while sorrows memory is a sorrow still.

Byron

 

 

Do lado esquerdo carrego meus mortos.

Por isso caminho um pouco de banda.

Carlos Drummond de Andrade

A rotina da perda

 

Terapia intensiva

 

A ceifeira ronda

à volta das máquinas

ao redor dos tubos

no ar infectado de dor

– sombra indesejável

A ciência brinca

experimenta, põe e tira

mórbido esconde-esconde

fingida presença de Deus

Um corpo respira

(a máquina opera o milagre)

um corpo não mais senhor

do gesto, do gosto, do querer

corpo, cobaia, objeto

à mercê do progresso

A ceifeira espera

e sabe da hora

A ciência não

 

 

 

 

Rito de Passagem

 

Que sabemos nós

seres chorosos

à beira da morte

do outro?

Que sabemos nós

seres medrosos

à beira da vida

à beira de nós mesmos?

Que sabemos nós

da barca à espera

da passagem

do mistério?

– Nada

Por isso tememos

 

 

 

 

Dever cumprido

 

Brinca de eternidade

a jovem médica

Bagagem abarrotada

de ciência e tecnologia

Eletrodos ligados

incisões perfeitas

:

o dever manda

as mãos, firmes, obedecem

(ignora o calafrio

da morte pressentida)

Eis o prodígio

:

a vida devolvida

mecânica (e eterna?)

 

 

 

 

Desvio

 

O calor desafia o outono

flores abrem-se tontas

à luz enganosa de verão

- natureza violada

Minha mãe agoniza

(máquinas, balões, computadores,

tubos, luvas, gases, batas, relógios,

pomadas, seringas, fraldas, algodão

:

(ar)tificial saúde)

– desvio de percurso

 

 

 

 

A dor de ver em dor

 

O rosto é o templo do corpo.

E quando o corpo decai,

a alma não tem outro santuário

a não ser o rosto

Carlos Fuentes

No corpo enfermo

inerte

: olhos e dor

únicos sinais

Nos olhos baços

(instrumentos reveladores)

: o sofrimento

fundo

imensurável

solitário

inaudito

Movidos pela dor

os olhos fazem doer

em outros olhos

: dor apenas vista

(compartilhada?)

Dor que se comunica em dor

(a dor de ver em dor, dizem, é provisória

– mas como dói, diria o poeta)

 

 

 

 

Assepsia

 

Tão triste que na própria morte

não haverá maior tristeza.

Dante Alighieri

 

 

corredores hospitalares

: tristezas cruzadas

solitários soluços

(rotina incessante da perda)

corredores hospitalares

: olhos evitam olhos

apenas o silêncio cumplicia

(o ar cortado às fatias)

corredores hospitalares

: no branco asséptico

a cor turva do sofrer

(gélida paisagem)

 

 

 

 

 

Similia a similibus curentur

 

 

Repleta de pena e lágrimas

(ungüentos inúteis)

venho, desconsolada,

consolar-te

Os semelhantes curam-se

pelos semelhantes

O sofrimento cessa

com outro sofrimento

(aposta desesperada)

 

 

 

 

Solidões

 

Los hombres vivimos juntos,

pero cada uno se muere solo

y la muerte es la suprema soledad.

Miguel de Unamuno

 

Dizias-me

:

- não quero,

mas qualquer dia

terei que partir

Intuías

:

a proximidade

a solidão da viagem

a dispensa de acompanhante

Temias

:

do parto, sabias

(contavas)

da morte, mistério

(calavas)

Parto e morte

(solidões assemelhadas)

:

origem, ambos 

 
   

Um corpo não mais

Vestígios

 

Mas de tudo fica um pouco

Carlos Drummond de Andrade

 

nas trovas esparramadas

nas agendas telefônicas

nos bilhetes apressados

:

a tua caligrafia

na memória das gavetas

nas revistas por abrir

no lugar vazio à mesa

:

imaterial presença

no casaco com teu cheiro

no chocolate abocanhado

no xampu pela metade

:

vestígios do que foi vida

irremediável ausência

 

 

 

A morte e a morte

 

A morte

não é a lembrança

de um corpo não mais

corpo

de uma trajetória sonâmbula

em direção ao sepulcro

do barulho seco e indiferente

da pá do pedreiro

finalizando a função

A morte

é a constatação

(real, insuportavelmente real)

:

um nome e duas datas

gravadas em metal

na lápide silenciosa

 

 

 

 

Memória

 

Em meu dedo

o teu dedal

(tento, mãe

costurar tua memória

prender-te ao que me resta)

Incertos pontos

que a vista embaçada

não deixa urdir

 

 

 

 

Das mortes

 

da primeira vez que te vi morrer

, a lembrança do horror:

teu corpo (ainda) morno e nu

na pedra fria

e

a marca da dor

num rosto que já não era o teu

da segunda vez que te vi morrer

, o torpor das exéquias:

pesadelo da tarde sem ar

sensação de estrangulamento

da terceira vez que te vi morrer

, o choque e o estranhamento:

teu nome citado no templo

na oração aos defuntos

da última vez que te vi morrer

, a dor fina e lancinante:

o descarte dos teus pertences

a certeza do nunca mais

nunca...

(a morte também em mim)

 

 

 

 

Da alma em desalinho

Saudade

 

A saudade

vê-se

:

uma dor física

projetada

nas frestas do armário

no retalho de tecido

do que foi a tua saia

no pé seco de manjericão

na jardineira esquecida

(ausência de tuas mãos)

A saudade

aprende-se

:

no gesto cotidiano

no diuturno sentir

da alma em desalinho

 

 

 

 

Desamparo

toda a saudade é uma espécie de velhice

Guimarães Rosa

 

aniversario

no aniversário de tua morte

(havia um clã

e o teu comando

– elo imperceptível

a reunir e orientar –

era conforto e presença

certeza de juventude)

órfã, envelheci

 

 

 

 

Dia de Finados I

 

O dia dois de novembro

era apenas um feriado

e sempre chovia

Todos estavam vivos

e jorravam primaveras

nas águas da primavera

(a juventude é imortal

imune a intempéries)

Neste dia dois de novembro

do ano dois mil e dois

(não chove – rito e tradição rompidos)

aprendo, pelo desespero da ausência

o significado dos sinos

e o imensurável peso do cinza

(a maturidade é consciência da finitude

susceptível a mudanças climáticas)

 

 

 

 

Dia de finados II

 

 

ofereço-te uma rosa

(gostavas tanto delas...)

orações seculares

poemas enlutados

e este pranto incontido

à beira do teu jazigo

Inúteis heranças lusas

que não lavam dores

nem preenchem vazios

 

 

 

 

Dúvida

 

Hoje

(160 dias de saudade)

abracei teu casaco e senti teu cheiro

(a velha sensação de chegada e abrigo

de âncora jogada ao fundo)

Seria o teu cheiro ou a lembrança dele?

Seria o teu cheiro ou o desejo de senti-lo?

(o pranto aponta: a barca ao deus dará)

 

 

 

 

Luto

 

Venho a Buenos Aires

(para esquecer-te?)

Desfaço as malas

ato-me em nós

percorro, aflita

ruas nostálgicas

melancólicos cafés

(para encontrar-me?)

Ninguém se aparta de si

(nem em terra alheia)

Ninguém é outro

(ainda que fale uma língua provisória)

Viajar em luto

é sentir-se (mais) estrangeira

 

 

 

 

Desobriga

 

Antes

muito antes

odisséia juvenil

ânsia de

pertencer ao mundo

sem DNA imposto

nem relatório obrigado

No retorno a Ítaca

cãs e cansaço

um desejo apenas

– mãe, cheguei...

no silêncio insuportável

tua poltrona vazia

desobriga qualquer relato

 

 

 

 

Legado

 

Depois que te foste

vejo-me em ti

(gestos

gostos

passos)

Repasse genético

atavismo a cumprir-se

 

 

 

 

Antecipação

 

Antes que os ritos do advento

invoquem este natal

antes que as sementes dos jarros

germinem

e o verde adorne o presépio

Antes que o cheiro de amêndoas

e o encarnado dos tecidos

povoem

o mês de festa vindouro

de dolorosas lembranças

Antes que o vazio

apague

as chamas das velas

(descolorido jantar)

e cubra a festa de fumo

Cuidarei de arrancar este dezembro

do meu calendário pessoal

colocarei trancas nas portas

(casa fechada aos reis)

e anteciparei o entrudo

:

tempo de quaresma e paixão

(a Páscoa como perspectiva)

 

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