DAlila Teles Veras

 

Estudos Críticos

  RESISTÊNCIA E ASSIMILAÇÃO EM DALILA TELES VERAS

Clara Moura Lourenço – Universidade de Coimbra

 

Numa entrevista concedida a Floriano Martins, incluída sob a forma de prefácio no livro Retratos Falhados, quando interrogada sobre o modo como as suas pertenças culturais se reflectem na sua obra, Dalila Teles Veras enuncia deste modo as linhas mestras do conteúdo subjacente às questões da construção identitária em contextos diaspóricos e que estão também subentendidas no título desta comunicação:

"Ninguém cruza a linha do Equador impunemente. Atada à cinta, a carga atávica, heranças avós das quais dificilmente nos desenvencilhamos. Ante a impossibilidade do retorno é preciso render-se e assimilar a cor circunstancial e, do sal recolhido na travessia, temperar esse novo viver. Para além do Bojador, a dualidade se faz presente, o sentido agudo de ser estrangeiro. Não são mais os mares que começam, mas terras que nunca se acabam. As raízes, veias abertas, passam a receber influências novas, convívios outros, determinando nova visão de mundo e, claro está, que isso irá reflectir lá adiante nos sentidos da poeta." (1)

 

Falar de resistência e assimilação a propósito de Dalila Teles Veras, no contexto de um Congresso sobre A vez e a voz da mulher imigrante portuguesa na diáspora, leva-nos, antes de mais, a destacar as ambivalências inerentes a uma escrita que se desenha num contexto de desterritorialização e reterritorialização das constelações identitárias forjadas numa linguagem que a travessia da(s) fronteira(s) geográfica(s) e simbólica(s), revela como lugar de (des)encontro / confrontação de dois mundos a que a autora se sente, simultaneamente, pertencer e estar excluída.

Para compreender melhor esta ambivalência, parece-nos útil recorrer ao conceito de "hermenêutica diatópica" proposto por Boaventura de Sousa Santos como estratégia de abordagem da realidade cultural enquanto fenómeno que não se deixa apreender na sua totalidade. Segundo o autor, "os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem." Porém, a força dos topoi, "principais premissas de argumentação dentro de uma dada cultura," contribui para "uma ilusão de totalidade assente na indução pars pro toto," ilusão essa que só pode ser desfeita quando uma cultura é confrontada com os topoi de outra cultura, fazendo então aparecer a sua incompletude. Só uma hermenêutica diatópica, ou mesmo multitópica como sugere Graça Capinha, poderá "maximizar a consciência da incompletude recíproca das culturas, através de um diálogo com um pé numa cultura e o outro pé noutra." (Santos, 1996: 27)

A condição de imigrante, situando-se num espaço de entre-culturas, um não-lugar, na acepção de Marc Augé,(2) onde nenhuma identidade pode fundar raízes, um "cá e lá" ou, melhor dizendo, "nem cá nem lá" de que falam tantas vezes os textos de autores que dão conta da experiência migrante, colocaria a pessoa numa situação privilegiada de observação, que lhe permitiria a consciencialização da incompletude tanto da cultura de origem quanto da cultura de acolhimento, de onde procede esse "sentido agudo de ser estrangeiro" de que fala Dalila Teles Veras no excerto da entrevista supracitada e que reencontramos noutros passos da sua obra à imagem do que acontece com outros autores que têm em comum uma experiência de emigração. Um sentimento que se inscreve em letras de fogo na carne das palavras, construindo as metáforas em que se diz a singularidade de cada experiência: experiência da "dualidade", do ser cindido, da fragmentação e da multiplicidade, da luta vital entre o desejo, paradoxal, de assimilação e de resistência cultural manifestados no que poderíamos chamar de uma poética da condição diaspórica que incluísse todos os textos/testemunhos (numa acepção alargada do conceito de texto) produzidos por homens e mulheres que, de algum modo, experienciaram o estranhamento proporcionado pelo atravessamento dos limites, espaciais ou simbólicos. Confrontando-se com a violência de um estado de anomia, de vazio, de silêncio que lhes impõe a necessidade de procurar uma nova linguagem para dizer essa realidade, as raízes são irrigadas, como diz Dalila Teles Veras, por "influências novas, convívios outros, determinando nova visão de mundo" e reflectindo a consciência de que aí se abrem vias de acesso a "terras que nunca se acabam," paisagens ilimitadas onde o olhar insaciável da imaginação poética pode espraiar-se no mundo infinito da linguagem. A pátria fragmentada por "uma rajada fulminante/uma bomba numa fronteira," segundo Alice Machado, "âncora estilhaçada," nas palavras de Paula Gonçalves, duas vozes da diáspora portuguesa em França, será então "pátria interior," "um lugar a reinventar / onde tudo se tornará lago / florestas / livros / contendo em si todo o poder / e a imensidão do Atlântico."(3)

No caso de Dalila Teles Veras, nascida na ilha da Madeira e emigrada para o Brasil aos onze anos de idade, acresce o interesse da problemática das suas constelações identitárias se desenvolverem no contexto das relações entre dois países que partilham entre si um passado colonial nem sempre livre de ambiguidades. Se por um lado, as relações entre Portugal e o Brasil estão marcadas por esse passado colonial tantas vezes evocado como um modelo singular de miscigenação e hibridismo cultural, apoiado pelas teses de Gilberto Freyre, por outro, paradoxalmente, é sabido como o estatuto dos imigrantes portugueses é, de certo modo, desqualificado pela cultura brasileira.

Boaventura de Sousa Santos chama a atenção para a ambivalência do estatuto identitário de Portugal como resultante da sua situação semiperiférica em relação à Europa e da sua história colonial que, quando comparada com a história do colonialismo exercido por outros países, designado pelo autor como colonialismo hegemónico, evidencia características de subalternidade que se inscrevem na própria identidade cultural nacional. Recorrendo às figuras de Próspero e Caliban, Boaventura de Sousa Santos procura demonstrar que, por razões de vária ordem, nomeadamente a escassez populacional que não permitiu a ocupação dos territórios colonizados nos mesmos moldes do que aconteceu com outros países colonizadores, isto é, apropriando-se das terras dos indígenas, as práticas coloniais dos Portugueses nunca delimitaram claramente a fronteira entre colonizador e colonizado, desenvolvendo-se antes uma inter-identidade complexa, que, tendo em conta as relações de subalternidade relativamente aos outros países europeus, participa simultaneamente de Próspero e Caliban, e é assumida como "identidade originária." (Santos, 2002, 54)

A inter-identidade, conceito central na teoria pós-colonial que reivindica a "experiência da ambivalência e da hibridez entre colonizador e colonizado", foi, segundo Boaventura de Sousa Santos, "a experiência do colonialismo português durante longos períodos" (40-41) levando o autor a concluir que os portugueses foram mais emigrantes do que colonos, nas "suas" próprias colónias. Esta situação é ainda mais premente quando se trata das relações entre Portugal e Brasil, visto que este último, mesmo após a independência, continuou a ser um país de emigração para milhares de portugueses, realidade que se intensificou nos finais do século XIX e primeira metade do século XX. A consciência de inter-identidade, em relação ao Brasil, tem ainda a seu favor o facto de os dois países partilharem a mesma língua, facto que tem, muitas vezes, como consequência, dificultar a percepção das diferenças culturais. Como afirma Graça Capinha, contrariamente ao que acontece noutras situações de emigração em que a diferença linguística faz sobressair de imediato a diferença cultural, no caso do Brasil "essa diferença começa por ser negada pelo uso da mesma língua, que acabará por ser utilizada (bem como os seus produtos culturais e literários) pela retórica dominante como instrumento de neutralização."(4)

Porém, se considerarmos o testemunho de quem alguma vez experienciou a situação de emigrante, a consciência da inter-identidade não resulta, forçosamente, no apagamento das diferenças, antes na afirmação de um não-lugar da identidade sempre a desidentificar-se, fazendo sobressair aquilo que, no poema Espelho provisório (5) de Dalila Teles Veras, é assinalado como a irremediável condição de estrangeira para si mesma, que lhe é devolvida pela "imagem trêmula" de uma identidade fantasma, construída e reconstruída em permanência, reflectida nas "vitrinas da cidade."

Espelho provisório

"São os espelhos que me revelam:
Sem eles eu talvez não soubesse de mim"

                                Cecília Meireles

Minha imagem nas vitrinas da cidade
(estrangeira, sempre)
ausculto:
os becos que dormitam
os cruzamentos infernais
os silêncios súbitos
a luta surda
a grita explícita
por um lugar à fresca
por um sonho de ribalta
pelo simples sobreviver

Anoto:
o que não está à frente
o que não brilha
o que não grita
o que não é outdoor
a camada abaixo da camada
o que não é mais
o que passa a ser
palimpsesto revelador
Serei eu essa imagem trêmula
nativa entre estrangeiros?
Será minha esta opaca imagem
que o lago turvo da falsa Praça
não permite distinguir?

O olhar da poeta é um olhar descentrado, estrangeiro, vigilante, em alerta permanente, desconfiado de tudo e até de si, interrogante, perscrutador de uma realidade onde é preciso penetrar para além do aparente, do visível que esconde e desfigura a imagem do eu e o revela como outro.

Mesmo assim, apesar de reconhecer que a sua "primeira percepção" a levou a pensar que "a língua era (quase) a mesma, mas a praxis cultural não", quando interrogada sobre as diferenças entre cultura portuguesa e brasileira na entrevista supracitada, Dalila afirma a impossibilidade de se situar inequivocamente de um dos lados da fronteira:

"Na minha memória de leituras não há uma percepção desse possível abismo entre as duas literaturas, antes, uma fusão como foi a vida, amalgamada pelo sincretismo cultural. Isso se reflectiu, inclusive, num aspecto conceitual no que concerne à minha "nacionalidade literária." Quando da minha opção pela palavra como ofício, enfrentei outro dilema: não era possível ser uma escritora portuguesa escrevendo como brasileira. Apaziguei-me, considerando-me uma escritora brasileira que nasceu em Portugal. A língua como pátria possível."

Mas, se a língua é a mesma, e se é certo que ela transporta consigo a memória de uma pertença, a marca e a inscrição da história política e social que engendra as identidades nacionais, étnicas, raciais, sexuais ou de classe, o "sotaque," ou o "idioma" derridiano, ou o monopolilogo de Susanne Howe diferencia cada falante, cada poeta de todos os outros dando conta da singularidade da experiência de apropriação/desapropriante da linguagem revelando a sua infinita plasticidade que se consubstancia em textos de carácter rizomático, linhas de fuga e práticas descentradas e nómadas de desterritorialização das palavras e das identidades por elas forjadas.

O projecto literário de Dalila Teles Vera ancora nesta concepção de linguagem enquanto matéria plasmável que oferece possibilidades infindáveis de reconfiguração do real reelaborando o alcance do conceito de cultura e de literatura enquanto espaço aberto, indeterminado, ilimitado onde ecoa uma polifonia de vozes dissonantes e de práticas plurais. Daí que a autora possa afirmar:

"Todas as escolas fizeram de mim uma poeta sem escola nem geração, mesmo porque penso que a segunda metade do século XX não formou gerações literárias, mas vozes, em muitos casos, dissonantes, que retiraram da tradição, do modernismo e das vanguardas apenas aquilo que mais lhes interessou.

Acredito, entretanto, que essa aparente insubordinação de não pertencer a "escolas" não exclui o fato de se estar ligada, em termos de linguagem, a uma determinada "corrente literária" que, a meu ver, estaria representada por uma certa marca ou parentesco planetário." (6)

Nesse projecto, assimilação e resistência sobrevivem numa relação dialéctica dinamizadora da actividade de intervenção cultural, próxima das comunidades em que Dalila Teles Veras se tem empenhado juntamente com outros poetas com quem fundou o grupo Livrespaço ou mediante as acções desenvolvidas no âmbito da Alpharrabio Livraria Espaço-Cultura, e que em 2000 lhe valeu o Prêmio Desempenho de Empreendedora Cultural, outorgado pela revista Livre Mercado.

A leitura das obras Alpharrabio 12 anos: uma história em curso e Seduzir para a poesia. Trajetória do grupo Livrespaço, confirma o projecto literário e cultural da autora, ancorado nos pressupostos teóricos anteriormente desenvolvidos.

Em Seduzir para a poesia. Trajetória do grupo Livrespaço, vamos descobrindo toda a dinâmica do grupo Livrespaço fundado em 1983 e actuando ao longo de onze anos consecutivos na região do Grande ABC. Surgindo num contexto de efervescência cultural que faz coincidir as reivindicações sociais e políticas com a cultura e a arte, não apenas como lazer e diversão mas como forma de consciencialização política, este grupo de poetas, "dez vozes dissonantes a formar um coro" cuja prioridade era "formar leitores e exercer uma acção cultural forte na comunidade,"(7) procura romper com o instituído e devolver a palavra aos seus utentes para vencer a resistência da sociedade "diante do acto de fazer poesia." Os elementos do grupo comprometem-se a exercer o papel de agentes transformadores que encaram a arte como "acto de resistência e participação social."(8) Embora não houvesse nenhum tipo de filiação a "escolas literárias" nem uma clarificação teórica do propósito da acção, a actividade do grupo – oficinas literárias, intercâmbio com outros escritores e artistas, actuação em bienais e feiras de livro, semanas culturais, edição de antologias e publicação da revista Livrespaço – era orientada para objectivos claros e precisos, fundados na partilha da crença de que era necessário aproximar os elementos que acreditavam sustentar "a literatura como sistema," a saber produtor/obra/leitor, e na vontade de privilegiar "o contacto mais íntimo e directo com a palavra" como forma de "despertar, através da poesia, a consciência crítica, como reflexão de mundo."(9) Nesse sentido é importante destacar a actividade do grupo junto das escolas de toda a região e o projecto "Poeta/Leitor" que promove recitais, exposições de livros, semanas culturais, cursos de redacção, ciclos de leitura, saraus, concursos de poesia, conferências, debates, etc.

Referindo-se à tarefa educativa levada a cabo pelo grupo, Dalila diz:

"Era Agosto e o ano de 1983. Os poetas, tímidos e solenes, eram apresentados a uma plateia de aproximadamente sessenta professores de língua portuguesa e literatura. Pelas mãos e a confiança da Profª Vitória Helena Cunha Espósito, então Delegada da 2ª Delegacia de Ensino de Santo André, expuseram o seu plano e não conseguiram conter o seu entusiasmo diante de suas próprias pretensões: levar a poesia para dentro das escolas, palavra poética do cotidiano das pessoas, passar a paixão e a relação de afecto em relação ao livro para os estudantes, despertar neles a consciência crítica através da arte, poderosa arma de resistência e participação social." (10)

Em 1994, o grupo está reduzido a 6 elementos e sentindo que, por falta de disponibilidade dos seus intervenientes, não consegue manter a actividade cultural e editorial da Revista Livrespaço, decide então a sua dissolução. Contudo, cada um e cada uma continuarão a trilhar os caminhos já experimentados e que demarcaram "um espaço histórico na literatura local" de que dão conta algumas publicações como é o caso do livro História da Literatura em Santo André – um ensaio através do tempo, de Tarso M. de Melo.(11)

Em 1992, Dalila Teles Vera funda a Alpharrabio – Livraria Espaço-Cultura mais tarde transformada em Livraria e Editora, dando continuidade a uma actividade cultural conduzida pela força anímica do amor aos livros, à literatura e à poesia. É uma parte da história da sua "militância cultural" que Dalila nos traz na obra Alpharrabio 12 anos: uma história em curso.

"Um livro de uma história em curso, … um trabalho em progresso, uma travessia que haveria de continuar abrindo trilhas alternativas no conformismo e na pasmaceira que toma conta das consciências e as faz passivas diante dos pratos prontos oferecidos pela mídia."(12)

A obra, definida pela autora como "o registro, de um ciclo cumprido, o registro de uma casa de livros, notas sobre uma casa de palavras, anotações sobre uma casa de artes, memórias de uma casa de cultura, notícias de uma micro usina de ideias e projetos" revela mais uma vez a dimensão de intervenção social que Dalila sempre associa à cultura e que a leva a assumir o seu trabalho como uma "contribuição decisiva para o estudo futuro da história e do cotidiano regional."(13)

Contrariamente ao pressuposto de Marc Augé segundo o qual uma livraria seria um desses não-lugares onde as pessoas se cruzam sem que se estabeleçam entre elas relações de identidade e de partilha de uma história, a Alpharrabio é, nos testemunhos daqueles/as que por lá foram passando, um local de encontro e de diálogo entre pessoas que, vindas das mais diversas origens, comungam de um ideal de emancipação pela arte e pela cultura. À medida que se avança na leitura, com a inventariação das actividades levadas a cabo ano após ano, também nós leitores, nos vamos familiarizando com esse espaço que "consegue aglutinar à sua volta, dentro de um ideal, uma harmonia de todas as culturas e artes,"(14) onde a forte presença da anfitriã e o seu profundo sentido comunitário colaboram para o reconhecimento do contributo desempenhado na vida cultural da cidade de Santo André e de toda a região, levando José de Sousa Martins a declarar: "o ABC tem aqui mais do que uma livraria: tem uma verdadeira universidade, a livraria que é uma biblioteca, a livraria inteligente."(15)

A arte em geral, e a poesia em particular, tal como toda a actividade cultural em que se encontra envolvida são, para Dalila Teles Veras, formas de resistência feita "[Á] margem da margem, caminhando pela lateral dos caminhos oficiais, mostrando artistas e a produção cultural fora da indústria do entretenimento."(16)

Resistência e assimilação são, em Dalila Teles Vera, as duas faces de uma mesma moeda que lhe permitem afirmar-se como "andreense, abecedense, com muito orgulho, sem brasileira sequer [eu] ser"(17) apontando para uma concepção pós-moderna de identidade que se distancia de uma perspectiva essencializada para assumir um carácter de construção social situada no tempo e no espaço em que "a cidade, a pátria, além da língua, … é muito mais o lugar onde a gente habita"(18) que, revelando-nos, como sustenta Santiago Kovadlof, a "nossa condição primordial de pessoas, isto é, seres abertos ao diálogo com a diferença que nos complementa e que, enquanto nos complementa, nos constitui,"(19) nos faz descobrir "múltiplos", "mestiços", "raça amálgama de raças", nas palavras de Dalila Teles Veras e, por consequência, "universais" como sublinha Paula Gonçalves, poeta emigrante em Paris:

"Deixei-me guiar pelo caminho do mundo, palmilhando freneticamente os aromas longínquos que chegavam à "Cidade da Luz" a cada esquina, a cada passo.

Tornava-me assim múltipla ao dedilhar diversas origens em que embrenhava num compasso visceral de sons e idiomas. O meu corpo estampava-se pouco a pouco na darbuka árabe, no santur oriental, na flauta de Pã sul-americana. Povoava-se-me a alma de partituras exóticas, de batuques misteriosos, de fantasias musicais.

Quis-me encontrar para sempre, com todos os povos, vindos do mundo inteiro, essas gentes que convergiam numa multiplicidade de cores e sabores, de vivências e de crenças e que se cruzavam naquele ecrã de tumulto universal."(20)


A emigração é então o caminho através do qual se faz também a descoberta de que ser português é, antes de mais e como nos ensinam as palavras de Dalila Teles Veras no poema 10 de Junho, "orgulho" de ser "raça amálgama de raças" que é como quem diz a descoberta da nossa inscrição numa categoria identitária mais vasta que dá pelo nome de HUMANIDADE.


BIBLIOGRAFIA

AUGÉ, Marc (2005) – Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Lisboa: 90º Editora.

CAPINHA, Graça (1997) - "Ficções credíveis no campo da(s) identidade(s): a poesia dos emigrantes portugueses no Brasil." In RCCS, nº 48, Junho, 103-146.


GONÇALVES, Paula (2006) – Ancre en éclats. Âncora Estilhaçada. Paris : Editions Lusophone, Col. Témoignages.


KOVADLOFF, Santiago (2007) - "A construção do Presente: Feições Filosóficas do Conceito de Trauma" In AAVV., O Estado do Mundo. 2ª edição, Lisboa: Edições Tinta-da-china, 219-239.

MACHADO, Alice (2006) – Éclats. Paris, Editions Lanore, col. Alchimies Poétiques.


SANTOS, Boaventura de Sousa (1996) – "A Queda do Angelus Novus", in RCCS nº 45, 5-34.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2002) – "Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade.", in Maria Irene Ramalho e António Sousa Ribeiro (Orgs.), Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Lisboa: Edições Afrontamento, 23-85.

VERAS, Dalila Teles, VERAS, Luzia Maninha Teles (2004) – Alpharrabio 12 anos: uma história em curso. Santo André/SP: Alpharrabio Edições.

VERAS, Dalila Teles (Org.) (2008) – Seduzir para a Poesia: Trajectória do Grupo Livrespaço 1983-1994. Santo André/SP : Alpharrabio Edições.


Notas:
1 - Dalila Teles veras, Entrevista concedida ao escritor Floriano Martins, incluída, à guisa de prefácio, no livro Retratos Falhados, Editora Escrituras, 2008.

2 - Os Não-lugares são definidos por Marc Augé como espaços de passagem por onde as pessoas transitam sem tempo nem possibilidade de concretizar relações duradouras, opondo-se à noção sociológica de "lugar" onde radica uma noção de cultura localizada no tempo e no espaço que dá realidade às relações identitárias de uma colectividade que partilha também uma história.

3- Alice Machado, « Ma patrie intérieure », in Éclats, Paris, Editions Lanore, 2006.

4- Graça Capinha, "Ficções credíveis no campo da(s) identidade(s): a poesia dos emigrantes portugueses no Brasil." In RCCS, nº 48, Junho, 103-146, 108.

5- Dalila Teles Veras, "Espelho Provisório", in Seduzir para a Poesia: Trajetória do Grupo Livrespaço 1983-1994. 130.

6- Dalila Teles Veras, entrevista a Floriano Martins, Op. Cit.

7- Dalila Teles Veras (Org.) – Seduzir para a Poesia. Trajetória do Grupo Livrespaço 1983-1994, Santo André, SP: Edições Alpharrabio, 2008, 13.

8- Idem, 11.

9- José Marinho do Nascimento, "Retomando os fios do tempo e organizando a matéria da memória: uma espécie de inventário das oficinas literárias do grupo Livrespaço de poesia" in Dalila Teles Veras (Org.) op cit., 59-66.

10 - Dalila Teles Veras, op. Cit., 73.

11- Idem, 17.

12- Dalila Teles Veras, Alpharrabio 12 anos: uma história em curso, Santo André/SP, Edições Alpharrabio, 2004, 10.

13 - Idem, 11.

14- Gisela Saar, in Dalila Teles Veras, Op. Cit., 269.

15 - José de Sousa Martins, in Dalila Teles Veras, Op. Cit., 277.

16 - Dalila Teles Veras, Op. Cit.

17 - Dalila Teles Veras, Op. Cit., 264.

18 - Idem, ibidem.

19- Santiago Kovadloff, "A construção do Presente: Feições Filosóficas do Conceito de Trauma" In AAVV., O Estado do Mundo. 2ª edição, Lisboa: Edições Tinta-da-china, 219-239, 235.

20 - Paula Gonçalves, Op. Cit., 160.


Trabalho apresentado pela Profª Clara Moura Lourenço, da Universidade de Coimbra no  IV Congresso A Voz e a Vez da Mulher Portuguesa na Diáspora:  Brasil e outros lugares, organizado pela USP e Universidade do Paraná, realizado em Curitiba, PR, Brasil, em maio de 2009, na Mesa de Debates A Literatura e a Mulher Portuguesa na Diáspora

  10 de junho
 

Olhos e carne a beber o verde-rubro
bandeira escancarada à emoção.
 


Vinho
(será ele o luso símbolo
ou o sangue que ferve e incendeia
este pendão?).
 


Saudade
mordendo feito bicho
feito tempo, feito chama.
 


Orgulho
raça amálgama de raças
cravos de abril rasgando a história
língua pátria outra para milhões
 


Camões
nem é preciso que o digas
nem compêndios, calendários ou cantigas
apenas o sangue a rugir em campanário
rubro lembrete
mais do que nunca hoje é dia
de sentir-se português.

 
   

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